O garoto de cabelo louro agachou-se, deixou-se escorregar ao longo do último troço do rochedo e encaminhou-se para a lagoa. Embora tivesse tirado o blusão, parte do seu uniforme escolar, e o arrastasse agora pela mão, a camisa cinzenta colava-se-lhe à pele e o cabelo encodeava-se-lhe na testa. À sua volta, a funda clareira rasgada na selva era um banho de calor. Rompia pesadamente por entre os cipós e os troncos quebrados, quando um pássaro, uma visão de vermelho e amarelo, cintilou numa fuga para o alto com um grito de feitiço. A este grito o eco respondeu com outro.
— Ei! — disse uma voz. — Espera um momento!
O matagal, num dos bordos da clareira, agitou-se e uma saraivada de gotas de água caiu com estridor.
— Espera um momento — repetia a voz. — Estou aqui preso.
O garoto de cabelo louro abaixou-se e repuxou as meias com um gesto automático que fez com que a seiva por um momento se parecesse com os condados ingleses.
A voz ouvia-se de novo.
— Nem me posso mexer com todas estas trepadeiras.
O dono da voz emergiu, esbracejando com o restolho alto, de modo que os ramalhos vibraram contra uma pala sebenta. As rótulas nuas dos joelhos eram grossas e tinham sido apanhadas e arranhadas por espinhos.
Debruçou-se, tirou cuidadosamente os espinhos e voltou-se. Era mais baixo que o garoto louro e muito gordo. Adiantou-se, buscando piso seguro para os pés, e olhou então através dos óculos de lentes grossas.
— Onde está o homem com o megafone?
O rapazinho louro abanou a cabeça.
— Estamos numa ilha. Pelo menos assim parece. Um recife no meio do mar. Talvez até não haja aqui gente crescida.
O gorducho olhou com um ar surpreendido.
— Havia o piloto. Mas não estava com os passageiros, estava à frente, na cabina.
O garoto de cabelo louro observava o recife, de olhos franzidos.
— E todos os outros pequenos... — prosseguia o gordo. — Alguns deles devem ter escapado, não é verdade?
O rapaz louro começou a dirigir-se para a água tão casualmente quanto lhe era possível. Procurava estar à vontade e não se mostrar excessivamente desinteressado, mas o gorducho correu atrás dele.
— Mas não há aqui gente crescida?
— Creio que não.
O garoto de cabelo louro disse isto solenemente, mas de súbito subjugou-o o prazer de uma ambição realizada. Fez o pino no meio da clareira e riu-se para a figura invertida do companheiro.
— Não há gente crescida!
O gordo pensou um momento.
— O piloto.
O louro deixou que os pés tocassem o solo e sentou-se na terra que revessava umidade.
— Deve ter continuado a voar depois de nos ter lançado. Não podia aterrar aqui. Pelo menos num avião com rodas.
— Fomos atacados.
— Irão voltar aqui.
O gorducho abanou a cabeça.
— Quando começamos a descer, espreitei por uma das vigias. Vi a outra parte do avião. Estava em chamas.
Olhou demoradamente toda a clareira.
— E tudo isto foi causado por um tubo.
O louro estendeu o braço e tocou no rebordo dentado de um tronco. Por um momento pareceu interessado.
— E que foi que lhe aconteceu? — perguntou ele. — Para onde foi agora?
— A tempestade arrastou-o para o mar. Era bem perigoso com todos os troncos de árvores a caírem. Ainda devem estar dentro do avião alguns pequenos.
Hesitou por um momento e depois tornou a falar.
— Como te chamas?
— Ralph.
O gorducho esperou que o outro, por seu turno, lhe perguntasse o nome, mas uma tal proposta de apresentação não foi feita.
O rapazinho louro, que se chamava Ralph, sorriu vagamente, ergueu-se e recomeçou a caminhar para a lagoa. O gordo colava-se-lhe persistentemente ao ombro.
— Creio que há muitos como nós espalhados por aí. Não viste outros por aí, não?
Ralph abanou a cabeça e apertou o passo. Depois tropeçou numa ramada e caiu com estrondo.
O gordo estava de pé diante dele, respirando fundo.
— A minha tia disse-me que não corresse — explicou ele por causa da asma.
— Asma?
— Sim. Não tenho fôlego. Na nossa escola era o único que tinha asma — disse o gorducho com uma pontinha de orgulho. E uso óculos desde os três anos.
Tirou os óculos e mostrou-os a Ralph, pestanejando e sorrindo, e começou a limpá-los na pala sebenta. Uma expressão de dor e concentração interior alterou-lhe os pálidos contornos do rosto. Enxugou o suor da face e ajustou rapidamente os óculos ao nariz.
— Fruta. Olhou à volta da clareira.
— Fruta — exclamou ele. — Espero... Tocou nos óculos, afastou-se de Ralph e agachou-se no meio da folhagem enriçada: — Eu volto já... num segundo... Ralph desenvencilhou-se cuidadosamente e escapuliu-se por entre as ramadas. Dentro de segundos podia ouvir atrás de si os grunhidos do gordo, que se precipitava para a barreira que ainda o separava da lagoa. Trepou a um tronco quebrado e saiu da selva.
A costa estava debruada de palmeiras. Subiam eretas ou inclinadas, ou reclinadas contra a luz, e adejavam no ar a sua copa verde a uma altura de trinta metros. O terreno a seus pés era um talude coberto de uma ervagem áspera, retalhado a toda a largura pelas vicissitudes de troncos derrubados de mistura com cocos sorvados e rebentões de palmeira. Por trás de tudo isto havia a escuridão própria da floresta e a mancha branca da clareira. Ralph quedou-se, com uma das mãos apoiada num tronco pardo, e franziu mais uma vez os olhos contra a água rebrilhante. Lá fora, talvez a uma milha de distância, salseiros de espuma babujavam uma ilha de coral, e mais além o vasto mar era de um azul-ferrete. Dentro do arco irregular de coral, a lagoa era ainda como um lago das montanhas — azul de todos os matizes, verde-sombreado e púrpura. A praia entre o terraço (Terraço: extensão de terreno estreita que acompanha geralmente a curva de nível em uma escarpa, ou à margem de um rio, lago ou mar. - N. Do T.) de palmeiras e a água era uma fina aduela, aparentemente interminável, pois à esquerda de Ralph, as perspectivas do palmar, da praia e da água reduziam-se a um ponto de infinidade; e sempre, quase visível, havia o calor.
Saltou do terraço. A areia era grossa sob os sapatos pretos e o calor vergastou-o. Deu-se conta do peso da roupa: num sacão, vigorosamente, descalçou os sapatos e arrancou as meias com a liga de elástico num só movimento. Em seguida subiu para o terraço, despiu a camisa e quedou-se no meio dos cocos em forma de caveira, com as sombras verdes das palmeiras e da floresta a deslizarem-lhe sobre a pele.
Desapertou a fivela do cinto em feitio de serpente, tirou as calças e as cuecas e ficou ali, nu, a olhar a praia e a água faiscantes.
Era já um rapazinho espigadote, doze anos e alguns meses, para ter perdido o estômago proeminente da infância, mas não tinha ainda a idade suficiente para a adolescência o ter tornado desajeitado. Poderia ver-se agora que talvez viesse a ser um pugilista, a julgar pela arca do peito e a largura dos ombros, mas havia uma suavidade na linha dos lábios e nos olhos que não prenunciava o demônio.
Acariciava brandamente o tronco da palmeira e, forçado por fim a acreditar na realidade da ilha, tornou a rir deliciado e fez o pino. Pôs-se agilmente de pé, correu ao longo do areal, ajoelhou-se e atirou duplos punhados de areia contra o peito.
Depois sentou-se e ficou a olhar para a água com os olhos brilhantes e exaltados.
— Ralph...
O gordo agachou-se no terraço e sentou-se cautelosamente, usando o rebordo para assento.
— Desculpa esta grande demora. A fruta... Limpou os óculos e acavalou-os no nariz achatado. A armação deixara no alto do nariz um fundo vinco rosado em forma de V. Contemplou criticamente o corpo bronzeado de Ralph e a sua própria roupa.
Pôs a mão na pega dum zíper que lhe corria ao longo do peito.
— A minha tia... Com decisão abriu o zíper e puxou a pala inteira sobre a cabeça.
— Pronto! Ralph olhou-o de soslaio e não disse nada.
— Com certeza que deves querer saber os nomes de todos eles — começou o gordo — para fazer uma lista. Temos de fazer uma reunião.
Ralph pareceu não entender a sugestão e o gorducho foi obrigado a continuar.
— Não me importo nada que me chamem o que quiserem, contando que me não chamem o que me chamavam na escola.
Ralph estava vagamente interessado.
— Que é que te chamavam?
O gordo olhou por cima do ombro e depois debruçou-se para Ralph. Segredou:
— Costumavam chamar-me Piggy (Tradução de piggy do inglês: porquinho, bacorinho, leitãozinho. - N. Do T.). Ralph rebentou de riso. Deu um salto.
— Piggy! Piggy!
— Ralph... faz favor...
O Piggy apertou as mãos num gesto apreensivo.
— Eu disse que não queria...
— Piggy! Piggy!
Ralph dançava no ar quente da praia e, voltando-se como um avião de combate de asas puxadas atrás, metralhou o Piggy.
— Trá-tá-tá! Picou na areia os pés do Piggy e deixou-se ficar estendido, rindo.
— Piggy!
O Piggy sorria com relutância, satisfeito a contragosto deste mínimo de reconhecimento.
— Contando que não digas aos outros... Ralph ria-se estendido na areia.
A expressão de dor e concentração voltava ao rosto do Piggy:
— Só um minuto. Apressou-se em direção à mata. Ralph ergueu-se e pôs-se a deambular pela direita.
Aqui o areal era abruptamente interrompido pelo motivo central da paisagem: um enorme bloco de granito rosado, cravado sem compromisso através da floresta, do terraço, da areia e da lagoa, que se projetava num esporão com o comprimento de metro e meio. O topo do rochedo estava coberto de uma fina camada de solo e de uma relva velosa, ensombrada pelas palmeiras novas. Não tinham ali solo suficiente para medrar, e, quando atingiam cerca de seis metros de altura, tombavam e secavam, formando uma alfombra de troncos de matizes variegados, onde era agradável encontrar assento. As palmeiras que ainda se mantinham de pé formavam um teto de verdura, raiado de baixo por uma maranha tremeluzente dos reflexos da lagoa. Ralph içou-se para este terreiro, notou a frescura e a sombra, cerrou um olho e convenceu-se de que as sombras que lhe brincavam no corpo eram na realidade verdes. Encaminhou-se para a ponta da esplanada virada ao mar e ficou a contemplar a água. Era transparente até ao fundo e reluzia com a eflorescência das algas tropicais e do coral. Um cardume de pequeninos peixes rebrilhantes revoluteava de um lado para o outro, Ralph falou consigo mesmo, fazendo vibrar as cordas de baixo com um prazer vivo:
— Uff...! Além da esplanada desdobrava-se novo encanto. Um ato de Deus — talvez um tufão, ou a tempestade, que acompanhara a sua própria chegada — tinha assoreado uma banda da lagoa, de modo que havia no areal uma longa e funda piscina, fechada por um alto recife de granito róseo na extremidade mais afastada.
Ralph já fora logrado mais de uma vez pela aparência especiosa de uma poça na praia, por isso aproximou-se desta, preparado para um desapontamento. Mas a ilha correspondia à realidade e o lagoeiro incrível, que naturalmente só era invadido pelo mar na subida da maré, era tão fundo numa das extremidades que tinha uma cor verde-escuro. Ralph inspecionou cautelosamente os trinta metros do circuito e mergulhou. A água era mais quente do que a temperatura do corpo e ele poderia bem estar a nadar numa enorme banheira.
O Piggy reapareceu sentado no rebordo rochoso, contemplando com inveja o corpo verde e branco de Ralph.
— Mal se pode nadar.
— Piggy!
O Piggy descalçou os sapatos e as meias, colocou-os meticulosamente no rebordo do rochedo e experimentou a água com um dedo do pé.
— Está quente!
— Mas que é que tu esperavas?
— Não esperava nada. A minha tia...
— Sebo para a tua tia! Ralph mergulhou e nadou debaixo de água com os olhos abertos: a orla arenosa do lagoeiro agigantava-se como a vertente de uma montanha. Virou-se, segurando a respiração, e uma luz dourada dançou e derramou-se-lhe pelo rosto. O Piggy, olhando com ar resoluto, começou a tirar os calções. De momento estava pálido, e adiposamente nu. Caminhou em bicos de pés ao longo da orla arenosa do lagoeiro e sentou-se com a água até ao pescoço, sorrindo orgulhosamente para Ralph.
— Então não nadas?
— Não sei nadar. Nunca mo consentiram. A minha asma...
— Sebo para a tua asma!
O Piggy recebeu este desabafo com uma espécie de paciência humilde.
— Mal podes nadar.
Ralph deu umas braçadas de costas ao longo da vertente, imergiu a boca e expeliu um jato de água para o ar. Depois ergueu o queixo e falou.
— Eu já sabia nadar aos cinco anos. O meu pai ensinou-me. um comandante de marinha. Quando estiver de licença, irá vir salvar-nos. Que faz o teu pai?
O Piggy corou subitamente.
— O meu pai já morreu — respondeu rapidamente — e a minha mãe...
Tirou os óculos e buscou em vão qualquer coisa com que os pudesse limpar.
— Eu vivia com a minha tia. Ela tem uma confeitaria. Costumava ter tantos doces, os que eu quisesse! Quando é que o teu pai vem salvar-nos?
— Assim que puder.
O Piggy ergueu-se da água a escorrer e ficou de pé, nu, a limpar os óculos com uma meia.
O único som que lhes chegava agora através do calor da manhã era o estridor longo e rilhado das ondas contra a restinga.
— Como é que ele sabe que nós estamos aqui? Ralph rolou na água. O sono envolvia-o como as miragens afagantes que se debatiam com o brilho da lagoa.
— Como é que ele sabe que nós estamos aqui? Porque, pensava Ralph, porque, porque... O estampido vindo da restinga distanciava-se cada vez mais.
— Irão dizer no aeroporto.
O Piggy abanou a cabeça, pôs os óculos brilhantes e olhou para Ralph a seu pés.
— Quem? Não ouviste o que o piloto disse acerca da bomba atômica? Estão todos mortos.
Ralph saiu da água, ficou de pé em frente do Piggy e considerou este problema inusitado.
O Piggy persistia.
— Estamos numa ilha, não é verdade?
— Eu subi a um rochedo — proferiu Ralph lentamente — e creio que estamos numa ilha.
— Estão todos mortos — tornou o Piggy — e estamos numa ilha. Ninguém sabe que estamos aqui. O teu pai não sabe, ninguém sabe...
Os lábios tremeram-lhe e os óculos ficaram embaciados.
— Temos de ficar aqui até morrer.
Com esta palavra o calor pareceu redobrar de intensidade, até que se tornou um peso ameaçador e a lagoa os atacou com um fulgor cegante.
— Vai buscar a roupa — murmurou Ralph. — Por aí. Percorreu o areal, sofrendo a hostilidade do sol, atravessou a esplanada e encontrou a roupa dispersa.
Vestir mais uma vez uma camisa cinzenta era um estranho prazer. Depois trepou à beira do esporão e sentou-se num tronco adequado na sombra verde. O Piggy içou-se, levando a maior parte da roupa debaixo do braço. Em seguida sentou-se cautelosamente num tronco derrubado junto do pequeno rochedo que entestava com a lagoa: os seus reflexos emaranhados tremularam sobre ele.
E falou:
— Temos de encontrar os outros. Temos de fazer qualquer coisa.
Ralph não respondeu. Aqui estava uma ilha de coral. Protegido do sol, indiferente à conversa de mau agouro do Piggy, sonhava agradavelmente.
O Piggy insistia:
— Quantos nós seremos? Ralph adiantou-se e quedou-se junto do Piggy.
— Não sei. Aqui e além, brisas leves enrugavam as águas polidas sob a tremulina da caloraça. Quando estas brisas alcançavam o terraço, as frondes das palmeiras sussurravam, de modo que manchas de uma luz embaçada deslizavam-lhes sobre o corpo ou agitavam-se como nervuras brilhantes e aladas na sombra.
O Piggy olhou para Ralph. Todas as sombras no rosto de Ralph estavam invertidas: verde, em cima, e, brilhantes, por baixo, do lado da lagoa.
Uma barra de sol raiava-lhe o cabelo.
— Temos de fazer qualquer coisa. Ralph olhou através do outro. Aqui estava, enfim, o lugar imaginado mas jamais plenamente encontrado, em que se dava o salto para a vida real. Os lábios de Ralph descerraram-se num sorriso deleitado, e o Piggy, tomando este sorriso, que lhe era dirigido, por um sinal de reconhecimento, riu-se com prazer.
— Se estamos realmente numa ilha...
— O quê? Ralph deixara de sorrir e apontava para a lagoa. Algo cor-de-creme jazia entre as algas mosqueadas.
— Uma pedra.
— Não. Uma concha. De súbito, o Piggy arrebatou-se numa excitação a que não faltava decoro.
— É verdade. É uma concha! já vi uma assim. No muro dum jardim. Chamava-lhe búzio. Costumava soprar-lhe por um lado e a mãe dele vinha logo.
Tem muito valor... junto do cotovelo de Ralph, um palmito pendia sobre a lagoa. Com efeito, o peso era já tal que arrancava um torrão ao solo pobre e, dentro em pouco, viria a cair. Ele partiu-o pela raiz e começou a agitá-lo na água, enquanto os peixes brilhantes guinavam para longe, de um lado para o outro. O Piggy debruçava-se perigosamente:
— Cuidado! Podes quebrá-lo...
— Cala-te! Ralph falava distraidamente. A concha era interessante, bonita, e um brinquedo digno, mas os vívidos fantasmas do seu sonho acordado ainda se interpunham entre ele e o Piggy, que neste contexto era uma irrelevância. O palmito, vergando, empurrou a concha através dos sargaços. Ralph serviu-se de uma das mãos como ponto de apoio e fez pressão com a outra, até que ergueu a concha a escorrer e o Piggy a pôde agarrar.
Agora que a concha já não era um objeto para ser visto, mas para ser tocado, Ralph também se excitou. O Piggy tagarelava:
— ...um búzio, tão caro. Aposto que, se quiséssemos comprar um, haveria de custar libras e libras... — ele tinha um no muro do jardim — e a minha tia...
Ralph tomou a concha das mãos do Piggy e um fiozinho de água escorreu-lhe ao longo do braço. Na cor a concha era de um creme carregado, laivado, aqui e além, de um tom róseo. Entre a ponta, esborcinada nutri pequeno orifício, e os lábios róseos da abertura desdobravam-se dezoito centímetros de concha, com uma ligeira espiral coberta dum desenho delicado e incrustado. Ralph sacudiu a areia do tubo profundo. — ...mugia como uma vaca — continuava o outro. — Tinha também umas pedras brancas e uma gaiola com um papagaio verde. Claro que não soprava nas pedras brancas, e dizia...
O Piggy fez uma pausa para recuperar o fôlego e acariciou o objeto rebrilhante que Ralph sustentava nas mãos.
— Ralph! Ralph olhou para ele.
— Podemos servir-nos dela para chamar os outros. Ter uma reunião. Virão quando nos ouvirem...
Sorriu para Ralph.
— Era o que queria fazer, não era? Foi para isso que tirou o búzio da água?
Ralph atirou para trás o cabelo louro.
— Como é que o teu amigo soprava o búzio?
— Era como se cuspisse — volveu o Piggy. — A minha tia não me deixava soprar por causa da asma. Ele disse-me que se soprava aqui do fundo.
O Piggy pôs uma das mãos sobre o abdômen proeminente.
— Experimenta, Ralph. Chama os outros... Duvidoso, Ralph levou o pequeno orifício da concha à boca e soprou. Da abertura saiu um som sussurrado, mas nada mais. Ralph limpou a água salgada dos lábios e voltou a tentar, mas a concha permaneceu silenciosa.
— Era como se cuspisse. Ralph afusou os lábios e esguichou uma onda de ar para dentro da concha, que emitiu um ruído surdo como o de um traque. Isto divertiu tanto os dois garotos que Ralph continuou a soprar durante alguns minutos no meio de frouxos de riso.
— Ele soprava aqui mesmo do fundo. Ralph apanhou o jeito e atingiu a concha com o ar expelido do diafragma. Ela soou imediatamente. Uma nota funda e áspera repercutiu pelo palmar, reboou pela maranha da floresta e ecoou no granito róseo da montanha. Bandadas de pássaros levantaram voo da copa das árvores e houve qualquer coisa que guinchou e se esgueirou pelo restolho.
Ralph afastou a concha dos lábios.
— Ena! A sua voz habitual soava como um murmúrio depois da nota áspera da concha. Levou de novo o búzio aos lábios, respirou fundo e soprou mais uma vez. A nota voltou a ressoar e, sob a pressão mais firme do ar, subindo casualmente a uma oitava, tornou-se um clangor estridente, mais penetrante do que antes.
O Piggy gritava qualquer coisa, com o rosto banhado de gozo, os óculos a rebrilharem. Os pássaros rompiam aos aulidos, e pequenos animais restolhavam.
Ralph perdeu o fôlego, a nota baixou da oitava e escoou-se num farfalhejo, num jato de ar.
O búzio estava silencioso, uma presa cintilante. O rosto de Ralph arroxeara-se com falta de fôlego e o ar sobre a ilha vibrava com o clamor do passaredo e de ecos agudos.
— Aposto que se pode ouvir a muitas milhas de distância. Ralph recuperou o fôlego e soprou uma série de breves buzinadas.
O Piggy exclamou: — Aí vem um! Um garoto aparecera entre as palmeiras, a cerca de uns cem metros da praia. Era um rapazinho à volta dos seis anos, rijo e louro, com a roupa rasgada e o rosto coberto de uma lambujem pegajosa de fruta. As calças tinham sido deitadas abaixo para um fim óbvio e incompletamente puxadas.
Saltou do terraço do palmar para o areal e as calças caíram-lhe junto dos artelhos. Desenvencilhou-se delas e encaminhou-se para a esplanada. O Piggy ajudou-o. Entretanto, Ralph continuava a soprar até que vozes gritaram na floresta. O gaiato agachou-se diante de Ralph, olhando para ele verticalmente e com alacridade. À medida que recebia a garantia de que algo se estava a fazer com um objetivo, começou a ter um ar satisfeito e enfiou na boca o único dígito limpo, um polegar róseo. O Piggy curvou-se para ele.
— Como te chamas?
— Joãozinho.
O Piggy murmurou o nome para consigo e depois gritou-o para Ralph, que não se interessou, porque continuava ainda a soprar. O rosto arroxeara-se-lhe com o prazer violento de fazer aquele ruído estupendo e o coração fazia pulsar a camisa esticada. A vozearia na floresta ia-se aproximando.
Sinais de vida eram agora visíveis na praia. A areia, faiscando sob a tremulina da caloraça, ocultava muitas figuras na sua extensão de milhas: rapazes caminhavam em direção à esplanada, atravessando o areal cálido e baço. Três gaiatos, pouco mais velhos do que o Joãozinho, apareceram surpreendentemente ao alcance da mão, vindos do lugar onde tinham estado a regalar-se com fruta na floresta. Um rapazinho escuro, alguns anos mais novo que o Piggy, apartou uma riça de restolho, dirigiu-se para a esplanada e sorriu jovialmente para toda a gente. Mais e mais foram chegando.
Seguindo o exemplo do inocente Joãozinho, sentavam-se nos troncos derrubados das palmeiras e esperavam. Ralph continuava a soprar breves e penetrantes buzinadas. O Piggy cirandava no meio do grupo, perguntando nomes e franzindo a testa para os decorar. As crianças davam-lhe a mesma simples obediência que tinham dado aos homens com os megafones. Alguns estavam nus e traziam a roupa consigo, outros seminus ou de uniforme escolar, mais ou menos vestidos — cinzento, azul, castanho-claro —, de casaco ou camisola. Havia emblemas, até divisas, riscas de cor nas meias. As suas cabeças formavam um cacho por cima dos troncos na sombra verde: cabeças escuras, louras, pretas, acastanhadas, ruivas e pardas, cabeças que tagarelavam e murmuravam, cabeças com olhos que espiavam Ralph e especulavam. Estava a fazer-se qualquer coisa.
Os garotos que caminhavam ao longo da praia, singulares ou em grupos de dois, eram visíveis logo que atravessavam a linha da tremulina para o areal mais próximo. Aqui atraiu o olhar, primeiro, uma criatura negra como um morcego, que dançava na areia, e só depois se lhe distinguia o corpo. O morcego era a sombra de um garoto, reduzida pelo sol a pino a uma mancha entre pés apressados.
Mesmo ainda quando soprava, Ralph notou os dois últimos corpos que alcançaram a esplanada sobre uma negra sombra tremulante. Os dois rapazes, com crânio em forma de bala e cabelo áspero como estopa, estiraram-se no solo e ficaram a arfar como dois rafeiros, sorrindo para Ralph. Eram gêmeos, e quem os olhasse surpreendia-se, incrédulo, com uma duplicação tão jovial. Respiravam ao mesmo tempo, sorriam simultaneamente, rijos e pletóricos de vida. Mostravam a Ralph lábios úmidos, que não pareciam providos de pele suficiente, de modo que os traços se esfumavam e a boca se lhes abria desmesuradamente. O Piggy inclinou para eles os óculos rebrilhantes, e, entre as buzinadas, podia ser ouvido a repetir os nomes deles.
— Samuel, Érico, Samuel, Érico. Depois confundiu-os: os gêmeos abanaram a cabeça, apontaram um para o outro e a turba rompeu à gargalhada.
Por fim, Ralph cessou de soprar e sentou-se, com o búzio pendente de uma das mãos, a cabeça dobrada sobre os joelhos. À medida que os ecos foram morrendo, assim se desvaneceram as gargalhadas e caiu o silêncio.
No aro da tremulina de diamante, um ponto negro aflorava ao longe na praia.
Ralph viu-o primeiro e pôs-se a observá-lo até que a fixidez do seu olhar desviou todos os olhos naquela direção. Em seguida a criatura emergiu da miragem para o areal claro e viram que a escureza não era toda sombra, mas principalmente roupa. A criatura era um grupo de rapazes, marchando aproximadamente a passo, em duas colunas paralelas e vestidos de um modo excentricamente estranho. Levavam no braço calções, camisas e diferentes peças de vestuário, mas cada um dos rapazes trazia um boné preto e quadrado com um emblema de prata. Os corpos estavam ocultos, da garganta aos artelhos, por túnicas negras, que tinham uma longa cruz de prata sobre o lado esquerdo, no peito, e terminavam no pescoço por uma golilha pregueada. O calor dos trópicos, a descida, a busca de alimento, e agora esta marcha suarenta ao longo do areal esbraseante dera-lhes ao rosto o aspecto de ameixas recentemente lavadas. O rapaz que os comandava estava vestido da mesma maneira, mas o emblema do boné era de ouro. Quando o grupo se encontrava a cerca de dez metros da esplanada, berrou uma ordem e eles estacaram, arfantes, suando, oscilando na luz crua. O rapaz adiantou-se, de dorso arqueado em direção à esplanada e de túnica esvoaçante, e espreitou para o que era quase completa escuridão para ele:
— Onde está o homem da corneta? Ralph, pressentindo o seu encandeamento pela luz do Sol, respondeu-lhe:
— Não há aqui nenhum homem com uma corneta. Só estou eu.
O rapaz aproximou-se e olhou para Ralph, engelhando o rosto ao encarar com ele. O que viu do rapazinho louro, com a concha cor-de-creme sobre os joelhos, pareceu não o satisfazer. Voltou-se rapidamente, fazendo rodar a sua negra túnica.
— Não há aí então um barco? Dentro da túnica flutuante ele era alto, magro e ossudo, e tinha o cabelo ruivo sob o boné preto. O rosto estava refegado e coberto de sardas e era feio sem ser bronco. Neste rosto arregalavam se dois olhos de um azul desbotado, agora frustrados e tomados, ou prestes a deixarem-se tomar, de cólera.
— Não há então aqui um homem? Ralph falou para o seu dorso voltado.
— Não. Vamos ter uma reunião. junta-te conosco.
O grupo dos encapotados começou a sair fora da fila. O rapaz alto gritou-lhes:
— Coro! Sentido! Fatigadamente obediente, o coro cerrou alas e pôs-se em fila, ficando para ali a oscilar ao sol. No entanto, alguns começaram a protestar debilmente.
— Mas, Merridew.. Por favor, Merridew... não podíamos...? Então um dos rapazes caiu de borco na areia e a fila desfez-se. Içaram para a esplanada o rapazinho que caíra e deixaram-no deitado. Merridew, de olhos arregalados, tirava o melhor partido possível de uma má situação.
— Está bem. Sentem-se. Deixem-no.
— Mas, Merridew..
— Ele está sempre a desmaiar — contestou Merridew. — Fez o mesmo em Gibraltar e em Adis Abeba, e, às matinas, tombou por cima do regente.
Esta última nota de inconfidência bisbilhoteira levantou risinhos no coro, que se empoleirava como aves negras na maranha de troncos e examinava Ralph com interesse. O Piggy não perguntava nomes. Estava intimidado por esta superioridade uniformizada e a ríspida autoridade que se revelava na voz de Merridew. Encolhera-se do outro lado de Ralph e bulia nos óculos. Merridew voltou-se para Ralph.
— Não há aqui gente crescida?
— Não. Merridew sentou-se num tronco e olhou à roda do círculo.
— Então teremos de olhar por nós mesmos.
Seguro do outro lado de Ralph, o Piggy falou timidamente:
— É por isso que Ralph convocou uma reunião, a fim de que decidamos o que devemos fazer, já tomamos nota dos nomes. Este é o Joãozinho. Aqueles dois... são gêmeos, Samuel e Érico. Qual é o Érico? Tu? Não... tu é Samuel.
— Eu sou Samuel.
— E eu Érico.
— É melhor sabermos todos os nomes uns dos outros — alvitrou Ralph. — Eu sou Ralph. — já sabemos quase todos os nomes — atalhou o Piggy. Agora vamos saber todos.
— Nomes das crianças! — exclamou Merridew. — Porque irei ser Jack? Chamo-me Merridew.
Ralph voltou-se para ele rapidamente. Aquela era a voz de alguém que sabia o que queria.
— Depois — volveu o Piggy —, aquele rapaz... esqueci-me...
— Está falando demais — interpôs Jack Merridew. — Cala o bico, Gordo!
Levantou-se riso.
— O nome dele não é Gordo — corrigiu Ralph. — O seu nome verdadeiro é Piggy!
— Piggy!
— Piggy!
— Oh, Piggy! Levantou-se uma tempestade de gargalhada e até nela participaram os menores. Por um momento, os garotos formaram um círculo de simpatia com o Piggy no meio. Com o rosto em fogo, ele baixara a cabeça e pusera-se a limpar os óculos mais uma vez.
Finalmente o riso esmoreceu e continuou a lista de nomes. Havia Maurício, logo a seguir a Jack em estatura entre os meninos do coro, mas largo e com um sorriso permanente. Havia um garoto franzino, furtivo, que ninguém conhecia e fechado consigo mesmo, com uma intensidade interior de evasiva e segredo.
Explicou num murmúrio que se chamava Rogério e remeteu-se outra vez ao silêncio. Bill, Roberto, Harold, Henrique. O menino do coro que tinha desmaiado sentou-se encostado a um tronco de palmeira, sorriu palidamente para Ralph e disse chamar-se Simão.
Jack falou:
— Temos de decidir do nosso salvamento. Houve um remurmúrio. Um dos pequenos, Henrique, disse que queria voltar para casa.
— Calados! — intimou Ralph distraidamente. Ergueu a concha. — Parece-me que precisamos de um chefe que tome decisões.
— Um chefe! Um chefe!
— Eu devo ser o chefe — propôs Jack com simples arrogância —, porque sou corista de capítulo e chefe de turma. Sei cantar.
Outro murmúrio.
— Pois bem — continuou Jack. — Eu... Hesitou. O rapazinho negrusco, Rogério, moveu-se por fim e falou.
— Vamos a uma votação.
— Sim! Sim!
— Votemos por um chefe.
— Vamos votar..
O brinquedo do voto era quase tão agradável como a concha. Jack começara a protestar, mas o clamor mudou do desejo geral de um chefe para um voto por aclamação do próprio Ralph. Nenhum dos garotos poderia ter encontrado uma boa razão para este resultado: a inteligência que se revelara tinha provindo do Piggy, ao passo que o chefe mais óbvio era Jack. Mas havia uma segurança em Ralph, quando se sentava, que o distinguira desde logo: eram a sua estatura e a aparência atraente e, mais obscuro, ainda que mais poderoso, havia o búzio. O ser que o soprara e se sentara, esperando por eles no terraço com o delicado objeto equilibrado sobre os joelhos, fora logo tomado à parte.
— Aquele que tem a concha.
— Ralph! Ralph!
— Seja chefe aquele que tem a corneta.
Ralph levantou a mão a pedir silêncio.
— Está bem. Quem quer Jack para chefe? Com uma obediência fúnebre, o coro ergueu as mãos.
— Quem me quer a mim? Todas as mãos, com exceção das do coro e do Piggy, se ergueram imediatamente. Em seguida também o Piggy levantou a sua, embora com relutância.
Ralph contou.
— Sou eu então o chefe.
O círculo dos rapazes rompeu num aplauso. Até o coro aplaudiu, e as sardas no rosto de Jack desapareceram sob um rubor de mortificação.
Ergueu-se, mudou de ideia e sentou-se de novo, enquanto o ar vibrava. Ralph olhou para ele, desejoso de lhe oferecer alguma coisa.
— Claro que o coro te pertence.
— Poderiam ser o exército...
— Ou caçadores...
— Poderiam ser...
O rubor morreu no rosto de Jack. Ralph acenou novamente, a pedir silêncio.
— Jack fica encarregado do coro. Podem ser... o que é que tu quer que eles sejam?
— Caçadores. Jack e Ralph sorriram um para o outro com uma tímida simpatia. Os outros começaram a falar com avidez.
Jack ergueu-se.
— Coro! Toca a tirar os bibes! Como se estivessem livres de uma aula, os pequeninos do coro ergueram-se, tagarelavam e depositaram um acervo de mantos negros sobre a relva. Jack dependurou o seu num tronco junto de Ralph. Os calções cinzentos colavam-se-lhe à pele com o suor. Ralph relanceou-os com admiração, e, quando Jack notou a direção do seu olhar, explicou:
— Tentei subir a colina para ver se havia água à nossa volta. Mas o teu búzio chamou-nos.
Ralph sorriu e ergueu a concha a pedir silêncio.
— Prestem todos atenção. Eu preciso de tempo para pensar. Não posso decidir agora o que vamos fazer. Se não estamos numa ilha, poderemos salvar-nos num instante. De modo que temos de decidir se estamos numa ilha. Têm todos de ficar aqui perto à espera e não ir para longe. Três dentre nós — se formos mais atrapalhamo-nos e perdemo-nos todos —, três dentre nós irão numa expedição, a fim de o descobrir. Vou eu, Jack e, e... Olhou à roda do círculo de rostos ávidos. Não faltavam rapazes para escolher.
— E Simão. Os gaiatos que se encontravam junto de Simão galhofaram e ele ergueu-se, sorrindo um pouco. Agora que a palidez do rosto se lhe desvanecera, notava-se que era um rapazinho magro, pequeno e vivo, com uns olhos que espreitavam sob um manhuço de cabelo liso, negro e áspero, tombado para a testa.
Anuiu, com um aceno de cabeça na direção de Ralph.
— Eu vou. — eu... Jack tirou de trás das costas uma faca de mato de um tamanho razoável e arremessou-a ao tronco. O zunido subiu e morreu.
O Piggy agitou-se.
— Eu vou também. Ralph voltou-se para ele.
— Isto não é trabalho para ti.
— Não importa.
— Não te queremos conosco — proferiu Jack friamente. Aqueles que temos já chegam.
Os olhos do Piggy faiscaram.
— Eu estava com ele quando descobriu o búzio. Eu estava com ele antes de todos os outros.
Jack e a companhia não prestaram atenção. Havia um destroçar geral.
Ralph, Jack e Simão saltaram da plataforma e puseram-se a caminhar para além da lagoa. O Piggy colara-se ao grupo, murmurando qualquer coisa atrás deles.
— Se Simão caminhar no meio — sugeriu Ralph — podemos falar por cima da cabeça dele.
Os três marchavam agora a passo. Isto implicava que, de vez em quando, Simão tinha de dar uma corridinha para se pôr a par dos outros dois. Então Ralph deteve-se e foi ao encontro do Piggy:
— Ouve lá! Jack e Simão pretenderam não notar nada. Prosseguiram a marcha.
— Tu não podes vir. Os óculos do Piggy estavam de novo embaciados, desta vez com humilhação.
— Disseste-lhes. Depois do que te contei...
O rosto ruborizava-se e a boca tremia-lhe.
— Depois de te ter dito que não queria...
— De quê você está falando?
— De que me chamavam Piggy. Eu te disse que de nada me importaria, se não me chamassem de Piggy. E te disse que não contasse e foi logo a primeira coisa que fizeste...
A quietude descia sobre eles. Ralph, olhando com mais compreensão para o Piggy, viu que ele estava ferido e magoado. Sentia-se hesitar entre uma desculpa e outro insulto.
— É melhor Piggy do que Gordo — disse por fim, com a franqueza dum genuíno chefe. — Em todo o caso, desculpa, se te magoei. Volta para trás e toma nota dos nomes. É essa a tua tarefa. Adeus!
Girou sobre os calcanhares e correu no encalço dos outros dois. O Piggy quedou-se e a rosa da indignação empalideceu lentamente nas faces.
Voltou à plataforma.
Os três rapazes caminhavam rapidamente no areal. A maré vazava e havia uma língua de areia debruada de limos, que era quase tão firme como uma estrada.
Difundia-se sobre os três uma espécie de encantamento, e o cenário e eles tinham consciência desse encanto e sentiam-se felizes. Voltavam-se uns para os outros, rindo com excitação, falando sem escutarem. O ar era brilhante. Ralph, confrontado com a obrigação de traduzir tudo isto numa explicação, fez o pino e deixou-se cair.
Quando acabaram de se rir, Simão acariciou timidamente o braço de Ralph e tiveram de se rir outra vez.
— Vamos! — incitou Jack por fim. — Nós somos exploradores.
— Vamos até ao fim da ilha — tornou Ralph — e espreitamos o canto.
— Se for uma ilha... Ora, por volta do entardecer, as miragens começaram a aquietar. Encontraram a ponta da ilha distintamente e sem qualquer deformação mágica de tamanho ou de sentido. Havia a maranha da quadratura habitual com um grande bloco pousado na lagoa. As aves marinhas faziam ali o ninho.
— Como uma capa de açúcar — exclamou Ralph — num bolo cor-de-rosa.
— Não podemos ver mais para além deste canto — explicou Jack —, porque não há nada. Apenas uma curva suave... podes ver tu mesmo, e os rochedos são cada vez piores...
Ralph pôs a mão em pala sobre os olhos e seguiu a linha recortada dos penhascos na sua subida para a montanha. Esta parte da praia estava mais próxima da montanha do que qualquer outra que tinham visto.
— Vamos tentar subir a montanha por este lado — disse ele. Parece-me o caminho mais fácil. Não se vê tanto da selva e há mais rochas cor-de-rosa. Vamos!
Os três rapazes começaram a trepar. Uma força desconhecida tinha arrancado e estilhaçado estes cubos, de sorte que para ali jaziam de través, muitas vezes empilhados diminutivamente uns sobre os outros. A característica mais habitual do rochedo era um penedo róseo sobrepujado por um bloco sesgo e este superado por outro e por mais outro, até que o rosado se tornava uma moreia de rochas em equilíbrio, que se projetavam através da fantasia arcada dos cipós da floresta. Onde os penedos rosados sobressaíam do solo, havia, muitas vezes, estreitos atalhos sinuosos que subiam. Eles seguiam-nos, embrenhando-se nas profundezas do mundo vegetal, de rosto voltado para o rochedo.
— Quem abriria este atalho? Jack deteve-se a limpar o suor do rosto.
Ralph quedou-se junto dele, arquejante.
— Homens? Jack abanou a cabeça.
— Animais. Ralph perscrutou a escuridão sob as árvores. A floresta vibrava minuciosamente.
— Vamos! A dificuldade não era a íngreme ascensão à roda das lombas do rochedo, mas os mergulhos ocasionais através do restolho, para atingir o atalho vizinho. Aqui as raízes e os caules das trepadeiras enredavam-se numa riça tal que os rapazes tinham de enfiar por elas como agulhas dobradiças. A sua guia principal, além do solo pardo e da claridade intermitente do dia através da folhagem, era a tendência do declive, sem saberem se este buraco, rendado de cabos de trepadeiras, se elevava mais do que aquilo.
De certo modo iam subindo. Murados nestes meandros, talvez no seu momento mais difícil, Ralph virou-se para os outros com olhos brilhantes.
— Giríssimo!
— Bestial!
— Estupendo! A causa deste prazer não era óbvia. Todos eles estavam suados, sujos e exaustos. Ralph estava muito arranhado. As lianas e trepadeiras eram grossas como coxas e mal deixavam pequenos túneis para penetração ulterior. Ralph soltava brados à experiência e eles, silenciosos, escutavam os ecos.
— Isto é o que se chama explorar — exultou Jack. — Aposto que ninguém aqui veio antes.
— Devíamos desenhar um mapa — volveu Ralph —, mas não temos papel.
— Podíamos traçar riscos numa casca de árvore — lembrou Simão — e enchê-los de tinta.
De novo veio a solene comunhão dos olhos cintilantes na tristeza.
— Bestial!
— Giríssimo! Não havia lugar para fazer o pino. Desta vez, Ralph expressou a intensidade da sua emoção pretendendo derrubar Simão, e, dentro em pouco, eram um montão feliz e arfante no semi crepúsculo.
Quando se desenvencilharam, Ralph falou primeiro:
— Temos de nos pôr a andar.
O granito róseo do penhasco vizinho estava mais arredado de trepadeiras e das árvores, de sorte que podiam caminhar pelo atalho. Assim, foram ter a uma outra mata mais esparsa, que lhes permitiu vislumbrar o mar dormente. Pela abertura veio o sol e secou o suor que lhes empapara a roupa no calor escuro e úmido. Por fim, o caminho para o cimo tornou-se uma espécie de refrega com a rocha rosada, sem mais mergulhos na escuridão. Os rapazes escolhiam o seu caminho por desfiladeiros e ladeiras de calhau.
— Olha! Olha! Sobre este braço da ilha, as rochas escavacadas erguiam as suas moreias e chaminés. Aquela contra a qual Jack se apoiava deslocou-se com um ruído rascado, quando a empurraram.
— Vamos! Mas não "vamos" para o cimo. O assalto ao cume teria de esperar, enquanto os três rapazes aceitavam o desafio. O rochedo tinha o tamanho de um pequeno automóvel.
— Iça! Um balanço atrás, outro adiante para apanhar o ritmo.
— Iça! Aumenta o balanço do pêndulo, aumenta, aumenta, eleva e aguenta contra o ponto de equilíbrio mais afastado, aumenta, aumenta...
— Iça!
O pedregulho vacilou equilibrado num único dedo, decidiu não voltar, fendeu o ar, caiu, embateu, rolou, pinchou num zunido através do ar e rasgou um buracão no dossel da floresta. Ecos e pássaros voaram, flutuou uma poeira alva e rósea, e a mata foi abalada no seu seio, como sob a passagem de um monstro enraivecido. E depois a ilha ficou serena.
— Braaavo!
— Como uma bomba!
— Iuuu! Durante cinco minutos não se puderam arredar deste triunfo. Mas abalaram por fim.
Depois disto era fácil o caminho para o cume. Quando alcançaram o derradeiro trato de terreno, Ralph deteve-se.
— Irra! Encontravam-se na orla de um círculo ou de um semicírculo no rebordo da montanha. A ourela estava toda coberta de uma florzinha azul, uma planta agreste de qualquer espécie. E o derrame corria pela vertente e denegava o dossel da floresta. O ar enxameava de borboletas, que levantavam voo, adejavam e pousavam.
Para além do vale cercado de montanhas em forma de anfiteatro erguia-se o cume quadrado da montanha, e em breve o dominaram.
Tinham conjecturado antes disto que se encontravam numa ilha. Ao escalarem os fragões róseos, com o mar de ambos os lados e as alturas de cristal do ar, tinham pressentido, por instinto, que o mar os abraçava por todos os lados. Mas parecera-lhes mais conveniente deixar a última palavra para o momento em que dominassem o cume e pudessem ver um anel de água.
Ralph voltou-se para os companheiros:
— Tudo isto nos pertence!
O cume tinha grosseiramente a forma de um barco com uma corcova junto da ponta, e, por detrás, desdobrava-se a descida emaranhada para a costa. De ambos os lados penedos, fragas, copas de árvores e uma ravina íngreme. Lá para diante o comprimento do barco, uma descida mais suave, revestida de arvoredo com laivos cor-de-rosa, e por fim a planura selvática da ilha, de um verde denso mas esbatido na extremidade num fio róseo. Além, onde a ilha se diluía na água, havia outra ilha, um rochedo quase isolado, que surgia como um forte e os defrontava no fundo verde, como um bastião ousado e nacarado.
Os rapazes examinaram tudo isto e depois olharam para o mar. Encontravam-se no alto e a tarde tinha avançado: a miragem não roubava à vista a agudeza de linhas.
— É um recife! Um recife de coral. já vi aquilo em fotografias.
O recife abraçava a ilha por mais de um lado, talvez à distância de uma milha da costa, e paralelo ao que eles agora consideravam a "sua" praia. O coral estava rabiscado no mar, como se um gigante se tivesse debruçado para reproduzir a forma da ilha numa fluida linha de giz, mas se tivesse cansado antes de a terminar. Dentro dormia uma água de pavão e revelavam-se rochedos e limos, como num aquário; aqui fora rebrilhava um mar de azul-ferrete. A maré rolava e longas estrias de espuma franjavam o coral. Por um momento tiveram a sensação de que o barco se movia firmemente à ré.
Jack apontou:
— Foi ali que caímos. Para além de penhascos e ravinas, havia um rasgão visível nas árvores; havia troncos decapitados, e, depois, a sangradura, que deixara apenas uma fímbria do palmar entre a clareira e o mar. Também estava ali o terraço, que afocinhava na lagoa com figuras como insetos que se moviam junto dela.
Ralph traçou uma linha sinuosa, desde o escalvado em que se encontravam até uma ladeira, um barranco apertado entre flores, deu a volta e desceu até ao rochedo, onde começava a clareira.
— É o caminho mais rápido para regressar. Olhos brilhantes, bocas entreabertas, triunfantes, saboreavam o direito de senhorio. Estavam exaltados; eram amigos.
— Não há fumaça de aldeia e não há barcos — disse Ralph com ar sensato. — Teremos de nos certificar mais tarde, mas parece-me que está desabitada.
— Vamos tentar descobrir comida — gritou Jack. — Caçar. Apanhar coisas, até que nos venham buscar.
Simão olhava para ambos; nada dizia, mas acenava com a cabeça, até que a mecha de cabelo escuro caída na testa ficou a ondular ao vento de trás para diante; o seu rosto alegrava-se.
Ralph olhava para o outro lado, para onde não havia recife.
— Lá mais para o fundo — proferiu Jack. Ralph juntou as mãos em forma de concha.
— Aquele pedaço da mata lá ao fundo... a montanha é que a sustenta.
Cada cunha da mata sustinha árvores e flores. Agora a floresta agitava-se, gemia, vergava. Os tabuleiros de flores mais próximos, nos rochedos, encresparam-se e, durante meio minuto, a brisa soprou-lhes fresca o rosto.
Ralph abriu os braços.
— É tudo nosso.
Riram, rolaram pelo chão e gritaram na montanha.
— Tenho fome. Quando Simão mencionou a sua fome, os outros deram-se conta da sua.
— Vamos! — intimou Ralph. — já descobrimos o que queríamos saber.
Escorregaram por uma ravina rochosa, caíram entre as flores e prosseguiram sob o dossel das árvores. Pararam aqui e examinaram os matagais com curiosidade.
Simão falou primeiro:
— Como velas. Mato de velas. Botões de velas.
O matiço era de um sempre verde-escuro e aromático e os numerosos botões de um verde-ceroso e fechado contra a luz. Jack cortou um com o facão e a fragrância derramou-se logo em torno deles.
— Botões de velas.
— Não se podem acender — comentou Ralph. — Parecem-se apenas com velas.
— Velas verdes — exclamou Jack depreciativamente. — Não podemos comê-las. Vamos!
Estavam na orla de uma espessa mata, calcorreando a trilha com pés doloridos, quando ouviram ruído — guinchos — e o rascar duro de patas no atalho. A medida que avançavam, os guinchos aumentavam, até que se tornaram um frenesi.
Encontraram um leitãozinho enliçado numa cortina de trepadeiras, debatendo-se nos cordões elásticos com toda a loucura de terror extremo. A sua voz era fina, com a agudeza de agulhas, e insistente. Os três rapazes precipitaram-se e Jack tirou novamente o facão com um floreado. Ergueu o braço no ar. Houve uma pausa, um hiato, o leitão continuou a chiar e as trepadeiras a sacudir, e a lâmina continuou a reluzir na ponta de um braço ossudo. A pausa foi apenas suficiente para lhes fazer compreender a enormidade do golpe que descia. Por fim, o leitão libertou-se das trepadeiras e escapuliu-se no restolho. Quedaram-se a olhar uns para os outros e para o lugar do terror. O rosto de Jack embranquecera sob as sardas. Reparou que ainda erguia o facão e deixou cair o braço, enfiando a lâmina na bainha. Então riram todos os três, envergonhados, e recomeçaram a dirigir-se para a trilha.
— Estava à procura do lugar — disse Jack. — Estava à espera dum momento para decidir onde havia de lhe meter a faca.
— Devia tê-lo matado — disse Ralph cruelmente. — Fala-se sempre na matança do porco.
— Espetam-se as goelas do porco para deixar sair o sangue tornou Jack.
— De outro modo não se pode comer a carne.
— Então porque não...? Sabiam bem porque o não fizera: por causa da enormidade da faca a descer e a cravar-se na carne viva, por causa do sangue intolerável.
— Eu ia matá-lo — continuou Jack. Seguia à frente e eles não lhe podiam ver o rosto. — Estava à procura do lugar. Para a próxima...!