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Primeiro Capítulo: O Médico e o Monstro

Primeiro Capítulo: O Médico e o Monstro

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O Médico e o Monstro Texto Integral
84 páginas

ISBN:
978-85-66798-34-0


Preço: R$ 3,99

O advogado Utterson era um homem de aspecto carrancudo, incapaz de um sorriso; frio, parco e seco de palavras; tímido na expressão do sentimento. Apesar disso e do seu ar esguio e chupado, ao mesmo tempo cinzento e triste, era um homem capaz de criar simpatia. Nas reuniões com os amigos e quando o vinho lhe agradava, algo de profundamente humano irradiava-lhe dos olhos; algo que nunca chegava a refletir-se nas palavras mas que falava, não só nos gestos mudos do rosto à sobremesa, mas também e muitas vezes e de modo eloquente em todos os atos da vida. Era austero consigo próprio; quando se encontrava a sós, bebia genebra para mortificar a sua inclinação por vinhos de boas marcas e embora apreciasse o teatro, há mais de vinte anos que não frequentava nenhum. Em troca, era de uma tolerância reconhecida para com os outros, admirando por vezes quase com inveja a grande força de espírito que o cometimento de certas façanhas exigia e, em caso de algum apuro, preferia sempre ajudar em vez de condenar.

— Prefiro a heresia de Caim — costumava dizer. — Deixo que seja o meu irmão a procurar por si o caminho para o diabo.

Por causa deste seu caráter, a miúdo o seu destino era ser a derradeira amizade decente e a boa influência final na vida de homens a caminho da degeneração. E embora continuassem a frequentar-lhe a casa, nunca mostrava o menor vestígio de mudança na sua conduta.

Sem dúvida, esta "proeza" não era difícil para um homem como Utterson que, na melhor das hipóteses, era reservado e baseava as suas amizades numa tolerância só comparável à sua bondade. É característico da pessoa modesta aceitar das mãos da fortuna o círculo já traçado das suas amizades e era isso que sucedia ao nosso advogado. Os seus amigos eram os membros da família ou aqueles a quem conhecia há já muito tempo. À semelhança da hera, os seus afetos eram obra da passagem dos anos e não correspondiam necessariamente a nenhuma aptidão ou característica especial por parte de quem os inspirava. Eram desse tipo os laços que o uniam a Richard Enfield, parente distante, muito conhecido em toda a cidade. Para muitos, aquela relação era um enigma e interrogavam-se sobre o que poderiam encontrar de interessante um no outro e o que teriam em comum. Todos quantos se cruzavam com eles durante os seus passeios de domingo, diziam que não falavam nada, que pareciam mortalmente aborrecidos e que saudavam com evidente satisfação o aparecimento de um amigo. E, contudo, apesar de tudo, ambos colocavam o maior interesse nessas digressões, apreciando-as como o melhor momento da semana e não só rejeitavam outras oportunidades de diversão para as poderem desfrutar sem interrupção, como também resistiam a qualquer chamamento das obrigações profissionais.

Aconteceu que num desses passeios dominicais foram dar a uma rua sinuosa de um dos bairros mais concorridos e animados de Londres. A rua era estreita e tranquila, mas com grande movimento comercial durante os dias de semana. Via-se que os seus habitantes eram prósperos e que competiam entre si para prosperarem ainda mais, gastando o excedente dos seus ganhos em artigos de luxo, de maneira que as montras que se alinhavam ao longo da via se mostravam tentadoras, muito atraentes, como duas filas de vendedores sorridentes. Até mesmo aos domingos, quando era menor o seu encanto chamativo e ficava quase deserta, a ruela reluzia como uma fogueira num bosque, contrastando com o bairro sombrio em que se situava, enchendo e alegrando os olhos dos transeuntes com os estores recém-pintados, os metais reluzentes e bem pulidos e a limpeza e a alegria geral pareciam ser a sua marca distintiva.

Duas portas mais adiante, ao virar de uma esquina do lado esquerdo, na direção de leste, a entrada de um pátio interrompia a linha das montras e precisamente nesse local, um edifício sinistro projetava sobre a rua a empena do seu telhado. Tinha dois pisos e não se viam nem janelas nem outra coisa para além de uma porta no piso inferior e de um muro descolorido no andar superior. Todo ele revelava um prolongado e sórdido abandono. A porta, sem campainha nem batente, estava com a pintura estalada e desbotada. Os vagabundos costumavam sentar-se junto do umbral e acender os fósforos nas suas almofadas. As crianças brincavam nas escadas e muitos estudantes experimentavam os canivetes nas molduras. Durante quase uma geração ninguém aparecera nem para afugentar aqueles visitantes ocasionais nem para consertar os estragos produzidos.

Richard Enfield e o advogado caminhavam pelo passeio oposto mas quando chegaram em frente da entrada, o primeiro ergueu a bengala e apontou para lá.

— Já tinhas reparado alguma vez nesta porta? — perguntou. O seu acompanhante respondeu afirmativamente. — Está associada na minha mente — acrescentou — a uma história muito estranha.

— Ah sim? — exclamou Utterson com uma ligeira alteração de voz. — Que história é essa?

— Bem, aconteceu assim — prosseguiu Enfield. — Regressava a casa vindo lá dos confins do mundo, por volta das três horas de uma negra madrugada de Inverno e tinha de atravessar um bairro onde não se via literalmente nada a não ser os candeeiros acesos. Percorri rua após rua, uma atrás da outra, todas iluminadas como que preparadas para um desfile e vazias como uma igreja e onde toda a gente dormia... até que por fim me encontrei naquele estado de ânimo em que escutamos o mínimo ruído e ficamos com o ouvido atento, começando a desejar a presença de um polícia. De imediato vi duas figuras: uma era um homenzinho acachapado que caminhava para leste a bom passo e a outra a de uma menina de uns oito ou dez anos que vinha a correr a bom correr por uma rua transversal. Como era de esperar, ambos chocaram ao chegar à esquina e então aconteceu o mais horrível da história: o homem atropelou e pisou o corpo da menina com toda a calma, deixando-a abandonada no solo a gritar de dor. Contado assim, não parece grande coisa, mas a visão foi diabólica. Não foi um ato de um ser humano mas antes de um abominável Juggernaut. Dei-lhe um berro e corri atrás dele; agarrei o nosso "cavalheiro" pelo pescoço e obriguei-o a voltar até ao local, já que se havia reunido um grupo de pessoas à volta da menina. Mostrava-se perfeitamente tranquilo e não ofereceu resistência, mas lançou-me um olhar tão inquietante que me senti inundado de calafrios. As pessoas reunidas à volta da menina eram seus familiares e de seguida apareceu o médico a quem ela ia precisamente chamar. Pois bem, segundo o doutor, a menina não tinha nada de grave a não ser o susto e se não tivesse ocorrido uma curiosa circunstância, a história teria acabado aqui, como é de supor. Só de o ver, senti uma intensa aversão por aquele homem e o mesmo aconteceu aos familiares da menina, coisa que, no fundo, era natural. Mas o que me surpreendeu foi a atitude do médico. Era um tipo vulgar e corrente de médico, de idade e aspecto indefinidos, com um forte sotaque de Edimburg. Forma particular da divindade hindu Visnu. O seu santuário principal situara Puri. Na festa do Rathayatra, passeiam-no numa enorme carruagem, debaixo de cujas pesadas rodas loucos fanáticos se arrojam com o desejo de morrer atropelados. E quase tão sentimental como uma gaita escocesa. Tal como nós, sempre que fitava o meu prisioneiro, punha-me trémulo e pálido como se desejasse matá-lo. Via que os seus pensamentos eram idênticos aos meus e dado que o assassinato estava fora de causa, fizemos o máximo que podíamos fazer. Dissemos àquele homem que armaríamos tal escândalo do sucedido que faríamos com que o seu nome fosse odiado de uma ponta à outra de Londres e que se tivesse alguns amigos e algum prestígio, prometíamos que os perderia. Durante todo esse tempo, enquanto o verberávamos com tanta veemência, tínhamos de nos esforçar por manter afastadas dele as mulheres que estavam mais furiosas que harpias. Nunca vira rostos com tamanho ódio. E ali, no meio de todos nós, estava esse homem, com uma espécie de frieza negra e insolente, atemorizado também, mas dominando-se como um ser satânico.

— Se decidiram arrancar-me dinheiro por causa deste acidente — disse ele —, naturalmente que estou nas vossas mãos. Qualquer cavalheiro que se preza sabe que tem de evitar uma cena a qualquer custo. Digam-me quanto querem.

Apertamos-lhe os pulsos e exigimos cem libras para a família da criança. Era evidente que desejaria evitar tal extorsão mas por fim claudicou dada a nossa atitude ameaçadora. O passo seguinte era conseguir o dinheiro e aonde crês que tudo isso nos conduziu? Pois claro, a esse edifício aí em frente. Puxou de uma chave, entrou e daí a pouco voltou a sair com dez libras em ouro e o resto num cheque ao portador contra o banco de Coutts, assinado com um nome que não posso mencionar, embora seja um dos aspectos importantes da minha história. Só te direi que era um homem muito conhecido, a miúdo citado na imprensa. A importância do cheque era tremenda, mas a assinatura, a ser autêntica, era muito mais. Assim, tomei a liberdade de sugerir ao nosso cavalheiro que tudo aquilo me parecia falso, uma fraude e que na vida real um homem não entra às quatro da manhã por uma porta de um sótão, regressando com um cheque de outra pessoa no valor de quase cem libras.

— Não se preocupem — disse-me ele muito tranquilo e com ar depreciativo —, que ficarei com os senhores até à abertura dos bancos e eu mesmo levantarei este cheque.

Desta forma pusemo-nos todos a caminho, o médico, o pai da menina, o nosso amigo e eu próprio. Passamos o resto da noite em minha casa e no dia seguinte, depois do pequeno-almoço, fomos ao banco como um único homem. Eu mesmo entreguei o cheque e disse que tinha todas as razões para crer tratar-se de uma falsificação. Pois nada disso se verificou. O cheque era legítimo.

— Que estranho! — disse Utterson, fazendo um gesto de reprovação. — Vejo que pensas como eu — prosseguiu Enfield.

— Realmente, não é uma história nada divertida. Aquele homem era um tipo com o qual ninguém quer ter qualquer relação, um ser verdadeiramente detestável, enquanto a pessoa que assinou o cheque é um exemplo, a fina-flor e a nata da decência, de resto bastante célebre e, o que é pior, uma dessas personagens conhecidas pelas suas boas obras. Uma chantagem, suponho. Um homem honesto que tem de pagar um preço elevadíssimo por algum deslize da sua juventude. Por causa disso, chamo a este edifício a "casa da chantagem". Ainda que, como compreenderás, isso esteja longe de explicar tudo.

E com estas palavras calou-se meditativo com ar distraído. Foi interrompido bruscamente por Utterson que de repente lhe perguntou:

— E não sabes se quem assinou o cheque mora aqui?

— Um lugar verosímil, não achas? — respondeu Enfield. Por acaso, vi o seu endereço. Vive numa praça qualquer.

— E nunca o interrogaste sobre este edifício?

— Não senhor. Sempre fui decididamente contra fazer perguntas. É como se fosse o dia do Juízo Final. Tu fazes uma pergunta e é como atirar uma pedra, estando tranquilamente sentado no cimo de uma colina. E essa pedra vai arrastando outras na sua queda. No final, um pobre infeliz (o último em que tivesses pensado) é atingido na cabeça no seu próprio jardim e a família terá de mudar de nome. Não estou disposto a...

— Eu tenho a minha própria regra: quanto mais casos investigo como o da rua misteriosa, menos perguntas faço.

— É uma regra muito sensata — disse o advogado Utterson.

— No entanto, decidi estudar o edifício — continuou Enfield. — Parece ser apenas uma casa. Não possui outra porta além da principal e por ela não entra nem sai ninguém a não ser, lá de muito em longe, o cavalheiro protagonista da minha aventura. O primeiro piso tem três janelas que dão para o pátio. No andar inferior, nenhuma. As janelas estão sempre fechadas, mas conserva as vidraças limpas. De resto, há uma chaminé que em geral fumega, pelo que deve viver ali alguém. Contudo, é coisa que não se pode garantir porque os edifícios estão tão juntos uns dos outros à volta desse pátio que é difícil dizer onde acaba um e começa outro.

Os dois caminharam durante algum tempo em silêncio até que Utterson comentou:

— Richard, essa tua regra é muito boa...

— Sim, creio que sim.

— Mas apesar de tudo — prosseguiu o advogado —, há uma pergunta que quero formular: gostava que me dissesses como se chama o homem que chocou contra a menina.

— Bem, não vejo que mal haverá em to revelar. Aquele homem chama-se Hyde.

— Hmmm — fez Utterson. — Qual era o seu aspecto?

— Não é fácil descrevê-lo. No seu aspecto, há algo de estranho, algo de desagradável, de francamente detestável. Nunca vi um homem a quem considerasse tão antipático e, apesar disso, não sei bem explicar a razão da minha atitude. Deve possuir alguma deformidade. Essa é a sensação que dá, embora não possa especificá-la com exatidão. É um homem de aparência extraordinária e, apesar disso, não podemos indicar nele nenhum sinal fora do normal. Não, senhor, não posso fazê-lo, não consigo descrevê-lo. E não é por um lapso de memória, porque neste preciso momento estou a recordar-me perfeitamente dele.

Utterson caminhou de novo um pedaço em silêncio, claramente perturbado com o peso das suas cogitações.

— Tens a certeza de que utilizou uma chave? — perguntou por fim.

— Meu caro Utterson... — começou a dizer Enfield, que não cabia em si de assombro.

— Sim, bem sei. Compreendo que deve parecer estranho. O fato é que se não te pergunto o nome da outra pessoa é porque já a conheço. Se foste inexato em algum ponto, convinha retificares o teu relato.

— Julgo que me devias ter avisado — respondeu Enfield mal-humorado. — Mas fui pedantemente exato, como tu dizes. Esse tipo tinha urna chave e o que é mais, ainda a possui. Vi-o a utilizá-la a semana passada.

Utterson suspirou profundamente, mas não pronunciou uma única palavra.

— Estou envergonhado por ter uma língua tão comprida continuou o jovem Enfield. — Isto é uma lição para mim. Não sei quando vou aprender a calar-me. Façamos um acordo: nunca mais voltemos a mencionar este assunto.

— Prometo-te de todo o coração, Richard — disse o advogado.

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