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Primeiro Capítulo: O Processo

Primeiro Capítulo: O Processo

Capítulo I

A detenção.
Conversa com a senhora Grubach;
depois com a senhorita Burstner.

O Processo Texto Integral
203 páginas

ISBN:
978-85-66798-17-3


Preço: R$ 3,99

Alguém devia ter caluniado a Josef K., pois sem que ele tivesse feito qualquer mal foi detido certa manhã. A cozinheira da senhora Grubach, sua hospedeira, que todos os dias às oito horas lhe trazia o desjejum, não se apresentou no quarto de K. nessa manhã. Jamais acontecera isso. K. aguardou ainda um poucochinho, olhou, recostado em seu travesseiro, a anciã que morava em frente de sua casa e que o observava com uma curiosidade inteiramente fora do comum; depois, porém, sentindo-se ao mesmo tempo faminto e surpreso, fez soar a campainha. Imediatamente bateram em sua porta, e no dormitório entrou um homem ao qual K. jamais vira antes naquela casa. Era um tipo esbelto, porém de aspecto sólido, que vestia um traje negro e justo, o qual, semelhante a uma roupa de viagem, apresentava diversas pregas, bolsos, abas, botões e um cinto, que emprestavam à veste um ar estranhamente prático sem que, porém, pudesse estabelecer-se claramente para que serviriam todas aquelas coisas.

— Quem é você? — perguntou K., erguendo-se a meio no leito. O homem, contudo, ignorou a pergunta, como se se devesse desculpar sua aparição naquela casa, e limitou-se por sua vez a indagar:

— Você chamou?

— Ana precisa trazer-me o desjejum — disse K., procurando estabelecer por conjetura, enquanto permanecia um momento em silêncio, quem seria aquele homem. Este, porém, não ficou muito tempo exposto aos olhares de K., mas, voltando-se para a porta, que entreabriu um pouco, disse a alguém que certamente estava por trás dela:

— Quer que Ana lhe traga o desjejum.

No quarto pegado seguiu-se a isto uma risota por cujo som não se poderia descobrir se correspondia a uma ou a diversas pessoas. Embora essa risota não tivesse dito ao estranho nada que ele ignorasse, este, contudo, disse a K., como um aviso:

— É impossível.

— Ora, esta é muito boa! — exclamou K., saltando da cama para vestir rapidamente as calças. — Verei que tipos de pessoas são as que estão na peça ao lado e como a senhora Grubach me explica esta intromissão.

No mesmo instante, entretanto, ocorreu-lhe que não devia ter dito isso em voz alta porque assim reconhecia, de certo modo, o direito que o estranho tinha em vigiá-lo; no momento, porém, não deu importância ao fato. De todas as maneiras, o estranho já o entendera assim, pois lhe disse:

— Não acha melhor ficar aqui?

— Não quero nem ficar aqui nem falar com você até que me diga quem é.

— Perguntei-lhe com boa intenção — disse o estranho, abrindo então a porta por iniciativa própria. A sala pegada, onde K. penetrou mais lentamente do que teria desejado, tinha à primeira vista quase o mesmo aspecto da noite anterior. Era o salão da senhora Grubach que talvez, com seus móveis, tapetes, porcelanas, apresentava-se um tanto mais espaçoso que de costume; isso, porém, não se percebia de imediato, tanto mais que a modificação principal era a presença de um homem, sentado à janela, com um livro do qual afastou a vista quando K. se apresentou.

— Você deveria ter ficado em seu quarto. Franz não lhe disse?

— Sim, mas que deseja você? — indagou K., desviando o olhar do novo personagem para fixá-lo naquele a quem acabavam de chamar Franz, que permanecia de pé junto à porta, e para tornar a dirigi-lo por fim ao outro.

Através da janela aberta tornava-se a ver a anciã vizinha que, apoiada na sua, contemplava a cena com curiosidade verdadeiramente senil, como se nada devesse perder dela.

— Desejo falar com a senhora Grubach — exclamou K., e fazendo um movimento como para livrar-se dos dois homens que, contudo, se encontravam a uma considerável distância dele, intentou deixar a sala.

— Não — retrucou o homem que estava junto à janela, deixando o seu livro sobre uma mesinha e pondo-se de pé. — Você não pode sair; está detido.

— É o que parece — disse K.—, e por quê? — perguntou depois.

— Não nos cabe explicar isso. Volte para seu quarto e espere ali. O inquérito está em curso, de modo que se inteirará de tudo em seu devido tempo. Saiba que exorbito de minhas atribuições ao falar-lhe tão amistosamente. Confio, porém, em que apenas me ouça Franz, o qual, igualmente, infringindo todas as regras, mostra-se-lhe muito cordial. Se você continua tendo tanta sorte como na designação de seus guardas pode alimentar esperanças.

K. quis sentar-se, porém então percebeu que em todo o salão não havia outro assento senão a poltrona que se encontrava junto à janela.

— Verá logo que é verdade tudo quanto lhe dissemos — disse Franz, adiantando-se para K., em companhia do outro homem. K. ficou profundamente surpreso devido especialmente à atitude do último, que significativamente lhe deu várias palmadinhas no ombro. Ambos os homens examinaram o camisão de K. e aconselharam-lhe que vestisse uma camisa de muito pior qualidade, esclarecendo-lhe que eles se encarregariam dessa que ele vestia assim como de toda a sua roupa branca que depois lhe devolveriam no caso de que o assunto terminasse de modo favorável.

— E melhor que nos confie as suas coisas — disseram — pois frequentemente no depósito acontecem fraudes e além do mais costuma-se ali, depois de certo tempo, vender tudo sem que ninguém se incomode em verificar se o inquérito em questão terminou ou não. E quão demorados são os processos deste tipo, especialmente nos últimos tempos! Claro está que, em última instância, você receberia o dinheiro obtido da venda que certamente seria bem pouca coisa, visto que na operação o preço não é determinado pela importância da oferta, mas pelo montante do suborno; além do mais, ao passar de mão em mão, conforme a experiência o demonstra, tais somas se vão tornando a cada ano menores.

K. prestou ligeira atenção a tais discursos; não emprestava grande importância ao direito, que talvez ainda possuísse, sobre suas próprias coisas; muito mais importante para ele era enxergar com clareza a situação em que se encontrava; somente que em presença desses dois homens nem mesmo podia refletir; o ventre do segundo guarda — evidentemente não podiam ser senão guardas da polícia — não cessava de apertar-se cordialmente contra ele; mas quando K. fitava o rosto do homem via que era seco, ossudo, provido de um nariz forte e torcido, e que não se enquadrava bem a seu corpo robusto e gordo, antes parecia adaptar-se melhor à figura do outro guarda. Que espécie de homens eram estes? De que estavam falando? A que departamento oficial pertenciam? Entretanto, K. vivia em um estado constitucional no qual reinava a paz, no qual todas as leis estavam em vigor, de modo que quem eram aqueles que se atreviam a invadir a sua casa? K. Sempre manifestara inclinação para encarar todas as coisas com a maior ligeireza possível, em acreditar no pior somente quando o pior se apresentava, a não nutrir grandes cuidados pelo futuro mesmo quando tudo tivesse um aspecto ameaçador. Neste caso, porém, não lhe pareceu adequado levar o assunto em brincadeira; é certo que, bem considerado, tudo isto não podia deixar de ser uma brincadeira pesada, a qual, por razões desconhecidas, talvez pelo fato de que hoje K. completava trinta anos, seus colegas de banco haviam organizado; podia, certamente, tratar-se disso, e porventura não precisasse senão pôr-se a rir para que aqueles estranhos também rissem; talvez aqueles guardas não fossem senão os moços equilibristas da esquina da rua — pois, na verdade, pareciam-se com eles — aos quais teriam contratado..., e contudo K. estava, desde o primeiro instante em que vira o guarda Franz, formalmente determinado a não ceder a esses homens a menor vantagem que talvez possuísse ainda sobre eles. Se depois se dizia que não soubera compreender a brincadeira, K. não via nisso um grande perigo, ainda que recordasse — se bem que não possuísse a habilidade de aprender muito da experiência — alguns casos em que, tendo-se comportado com inteira consciência imprudentemente, diferentemente do que faziam os seus amigos, e sem preocupar-se de modo algum pelas possíveis consequências disso, vira-se castigado pelos acontecimentos. Isso não podia tornar a acontecer, pelo menos desta vez? se se tratava de uma comédia, ele também queria representar o seu papel.

Ainda estava livre.

— Com permissão de vocês — exclamou, passando rapidamente entre seus guardas para dirigir-se a seu quarto.

"Parece razoável", ouviu que diziam às suas costas. Já em seu quarto precipitou-se a abrir as gavetas da escrivaninha, onde encontrou tudo em perfeita ordem, porém a emoção impediu-o de encontrar logo os documentos de identidade que procurava. Achou, finalmente, a licença para andar em bicicleta e dispunha-se já a voltar com ela junto aos guardas, quando supôs que o documento era insuficiente, pelo que continuou procurando até que conseguiu encontrar a certidão de nascimento. Ao chegar à sala contígua abriu-se exatamente nesse momento a porta de frente pela qual quis entrar a senhora Grubach. Apenas permaneceu um momento no umbral, pois K. somente teve tempo de reconhecê-la, quando a senhora, visivelmente comovida, desculpando-se, desapareceu fechando com precaução a porta atrás de si.

— Mas, pode entrar — foi tudo o que K. pôde dizer. Ficara ali de pé, em meio à sala, segurando na mão os seus papéis sem afastar o olhar da porta que, porém, não tornou a se abrir; de repente, sobressaltou-se, porque o chamaram os guardas, os quais, sentados em uma mesinha junto à janela, como K. teve de reconhecê-lo nesse momento, dispunham-se a consumir o desjejum do próprio K.

— Por que a senhora Grubach não entrou? — perguntou K.

— Não o pode fazer — explicou o maior dos guardas. — Você está detido.

— Mas, como posso estar detido? E desta maneira?

— Começa outra vez — disse o guarda, enfiando um pedaço de pão untado com manteiga dentro do potinho de mel. — Não respondemos a tais perguntas.

— Teriam de responder — retrucou K. — Aqui estão os meus documentos de identidade; mostrem-me vocês os seus, e, especialmente, a ordem de prisão.

— Oh, céus! — exclamou o guarda. — Quão difícil se torna para você colocar-se em sua verdadeira situação! Não parece senão que todos os seus propósitos resumem-se em irritar-nos inutilmente, sendo certo que nós provavelmente somos de todos os seus semelhantes os mais achegados a você.

— É isso mesmo, acredite — disse Franz, e, em vez de levar a seus lábios a xícara de café que segurava na mão, ficou contemplando K. com um olhar longo, provavelmente cheio de significação, mas entretanto totalmente incompreensível para K. Este se viu envolto, a contragosto, em um diálogo de olhares com Franz, mas por fim, batendo em seus documentos, acabou por exclamar:

— Aqui estão os meus documentos de identidade!

— E que importa isso para nós? —, perguntou então o maior dos guardas. — Comporta-se, pior do que uma criança. Que deseja? Porventura acredita que poderá acelerar o curso de seu maldito processo discutindo conosco, que somos apenas guardas, sobre os seus documentos de identidade e a ordem de prisão? Nós somos apenas empregados inferiores que pouco sabemos de documentos já que nossa missão neste assunto consiste somente em montar guarda junto a você durante dez horas diárias e cobrar nosso soldo por isso. Aí está tudo o que somos; contudo, compreendemos bem que as altas autoridades a cujo serviço estamos, antes de ordenar uma detenção, examinam muito cuidadosamente os motivos da prisão e investigam a conduta do detido. Não pode existir nenhum erro. A autoridade a cujo serviço estamos, e da qual unicamente conheço os graus inferiores, não indaga os delitos dos habitantes, senão que, como o determina a lei, é atraída pelo delito e então somos enviados, os guardas. Assim é a lei, como poderia haver algum erro?

— Desconheço essa lei — disse K.

— Tanto pior para você — replicou o guarda.

— Sem dúvida, essa lei não existe senão na imaginação de vocês — prosseguiu dizendo K., com a intenção de penetrar o pensamento dos guardas e procurando induzi-lo em seu favor. O guarda, porém, limitou-se a dizer:

— Você logo sentirá o efeito dessa lei.

Então, interveio Franz.

— Observe bem, Willem; por uma parte admite que desconhece a lei e por outra afirma que é inocente.

— Tens razão, mas não podemos fazê-lo compreender isso — disse o outro.

K. ficou calado e pôs-se a pensar: Deixar-me-ei intimidar pela conversa destes empregados inferiores, pois eles próprios admitem que o são. De qualquer modo, estão falando de coisas que de maneira alguma compreendem. A segurança que ostentam apenas é possível devido à sua estupidez. Será bastante que eu fale algumas palavras com um representante da autoridade de condição igual à minha para que tudo se torne incomparavelmente mais claro que me atendo aos maiores discursos destes dois". Percorreu várias vezes de uma extremidade à outra da sala e viu a anciã vizinha que tinha arrastado até a janela um homem ainda mais velho do que ela, ao qual sustentava rodeando-o com um braço. K. precisava pôr fim de uma vez a tal comédia.

— Quero que vocês me levem ao seu superior — disse.

— Nós o faremos quando ele- o deseje, mas não antes — retrucou o guarda que fora nomeado Willem. — Além do mais, aconselho-o — acrescentou logo — que retorne ao seu quarto, que permaneça quieto ali e que aguarde tranquilamente aquilo que se tiver de fazer com respeito a você. Aconselhamos-lhe que não perca o tempo com pensamentos inúteis, mas que reserve suas energias o mais que possa, pois terá necessidade delas. Não nos tratou como o merecíamos, pois esqueceu-se que nós, quem quer que sejamos, ao menos em relação a você somos homens livres, o que constitui uma vantagem não pequena. Não obstante isso, estamos dispostos, se é que você tem dinheiro, a fazer-lhe vir um desjejum do café vizinho.

Sem responder a tal oferecimento, K. ficou de pé um momento, em silêncio. Talvez se tentasse abrir a porta da sala ou a do vestíbulo os guardas não se atrevessem a impedi-lo; talvez a solução do assunto estivesse em levar as coisas a um ponto extremo; porém, talvez também os dois guardas o apanhassem e o derrubassem ao solo, e então perderia toda a superioridade que de certo modo ainda conservava sobre eles. Por isso resolveu esperar a decisão mais acertada que o curso natural das coisas teria por força de trazer; e voltou então a seu quarto sem que pela sua parte, ou pela dos guardas, se pronunciasse uma palavra mais.

Atirou-se sobre a cama e apanhou na mesa do toucador uma formosa maçã que na noite anterior guardara exatamente para seu desjejum. Seria seu único alimento, mas, em todo caso, como pôde certificar-se à primeira grande dentada que lhe deu, era muito melhor que o desjejum obtido em qualquer sujo café noturno que a boa vontade de seus guardas lhe poderia prover. Sentia-se bem e confiante; é verdade que nessa manhã faltava ao seu trabalho no banco, mas, em razão do cargo, relativamente elevado que ali desempenhava, com certeza o desculpariam facilmente. Deveria alegar para desculpar-se a verdadeira causa? Assim pensava fazê-lo. Se não quisessem acreditar nele, o que neste caso era muito compreensível, recorreria à senhora Grubach como testemunha ou mesmo aos dois anciãos da casa de frente, os quais certamente já se teriam dado pressa em pôr-se na janela que estava em frente a seu quarto. Colocando-se na situação mental de seus guardas, K. admirava-se de que estes o tivessem afastado da sala em que se encontravam e o tivessem deixado sozinho na sua, onde tinha tantas oportunidades de matar-se. Mas ao mesmo tempo perguntou-se K., desta feita pondo-se em sua própria situação mental, que motivos podia ele ter para fazê-lo. O de que dois estranhos estiveram sentados na sala ao lado tomando o seu desjejum? Teria sido tão insensato matar-se que, mesmo quando tivesse querido fazê-lo, teria sido obstado exatamente por essa insensatez. Se seus guardas não fossem pessoas de tão curta inteligência, poderia perfeitamente supor-se que mesmo eles não viam, por esse mesmo motivo, o menor perigo em deixá-lo sozinho. Agora, se assim o desejavam, podiam ver como K. chegava até um pequeno armário no qual guardava uma garrafa de aguardente de superior qualidade, como bebia um copinho, primeiro para substituir o desjejum, e depois outro para adquirir coragem; este último somente, porém, por prudência e na previsão do caso improvável de que precisasse de tal coragem.

De súbito, sobressaltou-se, espantado de tal maneira ao escutar-se chamar da sala ao lado, que os dentes bateram contra o copo.

— O Inspetor chama-o! — ouviu que lhe diziam. O que o espantara fora apenas o grito, esse grito breve, seco, militar, do qual não supusera capaz o guarda Franz. Com respeito à ordem, propriamente acolheu-a de muito boa vontade.

— Enfim! — exclamou, fechando o armário e apressando-se em entrar na sala ao lado. Ali estavam os dois guardas, os quais, como se isto fora óbvio, o mandaram entrar novamente em seu quarto.

— Mas, o que é que você está pensando? — disseram-lhe. — Pretende, porventura, apresentar-se em pijama diante do Inspetor?

— Ao diabo! Deixem-me, pois, em paz! — exclamou K., que já estava junto ao armário onde guardava suas roupas. — Quando me vêm surpreender na cama não se pode esperar que me achem vestido com roupa de etiqueta.

— Não podemos ajudá-lo — disseram os guardas, que sempre que K. gritava ficavam sossegados, quase tristes, com o que o confundiam e, até certo ponto, o tornavam razoável.

— Cerimônias ridículas! — falou entre dentes; mas já havia apanhado, entretanto, uma jaqueta da cadeira e a segurou um instante com ambas as mãos como se a submetesse ao juízo dos guardas. Estes, contudo, menearam a cabeça.

— Precisa ser uma roupa preta —disseram. K. atirou então a jaqueta ao solo e disse, sem saber ele próprio em que sentido.

— Contudo, não se trata do debate principal.

Os guardas puseram-se a rir, ainda que se mantivessem firmes em sua atitude.

— Precisa ser uma roupa preta.

— Pois bem, seja como vocês dizem, se isso pode apressar o inquérito — disse K., abrindo o armário e pondo-se a procurar entre seus muitos trajes; escolheu um negro, o melhor que possuía, uma sobrecasaca de lindo corte que em sua época causara quase sensação entre os seus conhecidos; tirou também da gaveta outra camisa e começou a vestir-se com esmero. Em seu foro íntimo dizia que conseguira apressar o inquérito ao fazer com que os guardas se esquecessem de obrigá-lo a tomar um banho. K. observava-os atentamente para ver se lembravam que era necessário fazê-lo, mas certamente não lhes ocorrera tal coisa; em compensação, não se esqueceu Willem de mandar Franz para avisar ao Inspetor que K. estava vestindo-se.

Quando esteve inteiramente vestido precisou atravessar, acompanhado por Willem, a sala ao lado, que ficara vazia, para entrar na seguinte, cuja porta já estava aberta de par em par. Como era do conhecimento de K., esta peça estava habitada desde há pouco tempo pela senhorita Burstner, uma datilografa que costumava sair muito cedo para o seu trabalho e que retornava à casa já muito tarde; K. apenas trocara com ela, e não muitas vezes, algumas palavras de saudação. A mesinha de noite que costumeiramente estava junto ao leito havia sido mudada para o centro da sala para que servisse como escrivaninha; atrás dela estava sentado o Inspetor. Cruzara as pernas e apoiava um braço sobre o encosto da cadeira.

Em um canto da sala achavam-se de pé três jovens que olhavam as fotografias da senhorita Burstner penduradas na parede sobre uma esteira. Da manivela da aldraba da janela aberta pendia uma blusa branca. Apoiados ao peitoril da janela de frente achavam-se outra vez os dois anciãos, apenas que agora o número de espectadores aumentara, pois por trás deles estava de pé um homem que os ultrapassava de muito em altura e que, exibindo o peito pela abertura da camisa desabotoada, não cessava de retorcer entre os dedos a ponta de sua barba avermelhada.

— Josef K.? — perguntou o Inspetor, talvez apenas para concentrar sobre si o olhar distraído de K. Este concordou.

— Estará você muito surpreso pelo inquérito desta manhã? — indagou o Inspetor, pondo de lado cora ambas as mãos os poucos objetos que se encontravam sobre a mesinha de noite, a vela, os fósforos, um livro e uma caixa de costura, como se fossem objetos dos quais necessitasse para o interrogatório.

— Certamente — retrucou K., sentindo-se contente por achar-se enfim diante de um homem razoável, o qual sem dúvida havia de compreendê-lo apenas K. lhe falasse de seu assunto. — Certamente, estou surpreso, porém de modo algum muito surpreendido.

— Que não está muito surpreendido? — perguntou o Inspetor, enquanto tornava a colocar a vela no centro da mesinha e reunia todos os objetos ao redor dela.

— Talvez você não interprete bem o que eu digo — apressou-se a fazer notar K. —, quero dizer que... — K. interrompeu-se, procurando à volta dele com o olhar uma cadeira.

— Posso sentar-me? — perguntou por fim.

— Não é hábito — retrucou o Inspetor.

— Quero dizer — prosseguiu então K., sem se interromper — que certamente me acho muito surpreso, mesmo quando há trinta anos se encontre no mundo e se tenha de se desenvolver sozinho, como é o meu caso, se está imunizado contra as surpresas que não o afetam excessivamente, e de modo particular a de hoje.

— Por que a de hoje não o afeta de modo particular?

— Não quero dizer que considero tudo isto uma brincadeira, pois me parece que as disposições de uma representação semelhante exigiriam muito. Para isso seria preciso que todos os habitantes desta casa tomassem parte na comédia e também você, o que iria além dos limites de uma brincadeira. Não quero, portanto, afirmar que se trate de uma brincadeira.

— Certamente — disse o Inspetor, contando os fósforos que havia dentro da caixinha.

— Porém, por outro lado — prosseguiu K., voltando-se para todos que estavam ali presentes, e em realidade lhe teria agradado que mesmo os três jovens que se achavam junto às fotografias se voltassem para escutá-lo —, este assunto não pode igualmente ser muito importante. Infiro-o de fato de ver-me acusado sem que seja possível encontrar que eu tenha cometido o menor delito pelo qual se justifique uma acusação. Mas isto também é acessório; o fundamental é outra coisa: quem me acusa? Que autoridade superintende o inquérito? Vocês são funcionários? Nenhum de vocês têm uniforme, não seja o caso de querer-se denominar uniforme — então K. voltou-se para Franz — essa vestimenta que, contudo, é antes um traje de viagem. Tais são as questões que eu peço que me esclareçam. Além do mais, estou convencido de que depois dessas explicações haveremos de nos despedirmos do modo mais cordial.

O Inspetor deixou cair a caixinha de fósforos sobre a mesa.

— Você encontra-se em erro crasso — disse. — Estes senhores que vê aqui, e eu, desempenhamos um papel completamente acessório em seu assunto, do qual, para dizer a verdade, não sabemos quase nada. Se trouxéssemos nossos uniformes do modo mais regulamentar possível, nem por isso sua causa estaria melhor do que está. Muito menos lhe posso dizer, a você, de modo algum que está acusado, ou, dizendo melhor, não sei se o está. O certo é que está detido. Isto é tudo quanto sei. Se os guardas estiveram falando com você e sugeriram outra coisa, não deve encarar isso senão como simples falatórios. Mas se não posso responder às suas perguntas, posso em troca aconselhar-lhe que pense menos em nós e naquilo que lhe aconteceu esta manhã e mais em você mesmo. Por outro lado, não se alvoroce tanto com protestos de inocência porque isso causa má impressão, sendo certo que a outros respeitos você impressiona bem. Sobretudo, tem de se moderar em suas manifestações pois quase tudo quanto acaba de dizer podia tê-lo expressado com algumas palavras, e podíamos tê-lo entendido pela sua atitude; tudo isso não fala muito em seu favor.

K. ficou olhando fixamente o Inspetor. Então esse homem, mais jovem talvez do que ele, lhe dava lições como se estivessem na escola? Castigava a sua franqueza com uma reprimenda? E nada lhe diria, então, a respeito do motivo da detenção e da autoridade que a ordenara? Chegou a sentir-se irritado; passeou de cima para baixo na sala, coisa que ninguém obstou que fizesse; pôs em ordem os punhos da camisa, passou a mão pelo peito; alisou o cabelo e, aproximando-se dos três senhores, disse:

— Isto não tem o menor sentido.

Estas palavras fizeram com que os homens se voltassem para K. e o olhassem com gravidade. Por fim, K. voltou a deter-se diante da mesa do Inspetor.

— Hasterer, o fiscal, é um bom amigo meu — disse K. —, posso telefonar-lhe?

— Certamente — respondeu o Inspetor —, porém não chego a compreender por que deseja fazê-lo, a não ser que tenha a intenção de falar com ele a respeito de algum assunto particular.

— Não chega a compreender, por. quê? — exclamou K., mais confundido do que irritado. — Mas, quem são vocês? No que me diz respeito querem achar um sentido e comportam-se de modo mais insensato que possa haver. Não é para se ficar petrificado? Em primeiro lugar, os senhores assaltam-me em minha casa, sentam-se ou estão aqui de pé ao redor de mim e me atropelam em grande estilo. Carece porventura de sentido chamar pelo telefone um advogado já que sou declarado detido? Pois bem, não telefonarei.

— Mas, sim — disse o Inspetor, assinalando com a mão para o vestíbulo em que se encontrava o telefone. — Telefone, peço-lhe.

— Não, já não desejo telefonar — replicou K., dirigindo-se para a janela. Lá em cima continuava firme em seu posto na janela o grupo de antes; apenas pareceram perturbar-se um pouco na tranquila contemplação a que estavam entregues quando K. se aproximou para olhá-los. Os velhos quiseram afastar-se, mas o homem que estava por trás deles os tranquilizou.

— Vejam só, temos espectadores! — gritou K., com voz muito alta, dirigindo-se ao Inspetor e apontando com o indicador para a janela da frente. — Afastem-se daí! — gritou. Os três deram logo dois passos para trás. Ambos os velhos até se esconderam por trás do homem, que os cobriu com seu largo corpo e, a julgar pelos movimentos de seus lábios, este disse qualquer coisa que não se pôde perceber devido à distância. Mas nem por isso os três espectadores desapareceram inteiramente, senão que pareciam estar esperando o momento em que, sem que K. o percebesse, pudessem voltar a aproximar-se da janela.

— Esta é uma gente que carece inteiramente de discrição; não respeitam nada! — exclamou K., voltando-se para o interior do quarto. Conforme K. acreditou, atirando um olhar de soslaio, o Inspetor estava de certo modo de acordo com sua atitude, mas era também possível que o Inspetor nem mesmo tivesse percebido o que acontecera, pois, tendo posto uma das mãos sobre a mesa, parecia achar-se muito ocupado na comparação da longitude de seus dedos. Os dois guardas estavam sentados sobre um baú coberto com um tapete e cocavam os joelhos. Quanto aos três jovens que mantinham suas mãos nas cadeiras, olhavam ao redor com ar despreocupado. Sobreviera um silêncio como aquele que reina num escritório esquecido.

— Senhores — começou a dizer K., enquanto por um momento lhe pareceu que carregava sobre os seus ombros todos os presentes —, conforme pode inferir-se da atitude de vocês, meu assunto está terminado. Sou portanto de opinião de que o melhor é não pensar já mais a respeito do justificado ou injustificado, do procedimento de vocês, e terminar esta questão amistosamente estreitando-nos as mãos. Se estão de acordo com minha opinião, rogo-lhes então...

K. aproximara-se da mesa do Inspetor, ao qual estendia a mão, mas o Inspetor olhou para cima, mordeu os lábios e contemplou a mão estendida de K., o qual continuava acreditando que o Inspetor a apertaria, mas este se pôs de pé, apanhou um chapéu duro e redondo que estava sobre a cama da senhorita Burstner e colocou-o em si com precaução com ambas as mãos, como se estivesse experimentando um chapéu novo.

— Tudo lhe parece muito simples — disse a K. — De maneira que acredita que deveríamos dar um final amistoso a esta questão? Não, não; verdadeiramente não pode ser, o que, de modo algum quer dizer, por outro lado, que você tenha de se desesperar. Não, isso não; por que havia de se desesperar? Você está apenas detido; nada mais do que isso. Minha missão era comunicar-lhe isso; já o fiz e vi de que modo você reagiu e como se comportou. Por hoje já é suficiente, de modo que poderíamos despedir-nos; somente que, certamente, de modo transitório. Suponho que quererá correr ao banco.

— Ao banco? — perguntou K. — Julgava que estava detido.

K. formulou esta pergunta com certa entonação e soberbia, pois embora não lhe tivessem aceitado o aperto de mãos, sentia-se, sobretudo a partir do momento em que o Inspetor se levantara da cadeira, cada vez mais independente de toda essa gente. Alimentava a intenção, no caso em que de fato se fossem, de acompanhá-lo até a porta da casa e de apresentar-se-lhes em sua condição de detido. Por isso repetiu:

— Como posso ir ao banco se estou detido?

— Ah! — exclamou o Inspetor, que já estava junto à porta. — Você não me compreendeu bem. É verdade que está detido, mas isso de nenhum modo lhe impede de cumprir as suas obrigações. Não deve modificar a sua vida habitual.

— Assim sendo, essa detenção não é muito para se temer — disse K. aproximando-se do Inspetor.

— Nunca quis dizer outra coisa — replicou este.

— Mas, então, nem mesmo parece necessário comunicar-me tal arresto — disse K., aproximando-se ainda mais do Inspetor. Também os outros se tinham aproximado. Todos se encontravam nesse momento agrupados em um pequeno espaço junto à porta.

— Era o meu dever — disse o Inspetor.

— Um dever estúpido — replicou K., sem nenhuma consideração.

— Pode ser — retrucou o Inspetor —, mas não vamos agora perder o tempo com semelhantes discussões. Supus que você quisesse ir ao banco. E já que presta tanta atenção a todas as palavras, apresso-me a acrescentar: não o obrigo a ir ao banco; apenas supus que você desejasse ir. E para tornar-lhe mais fácil a situação e para que no banco passasse o mais inadvertida possível a sua chegada, trouxe comigo estes três senhores que são seus colegas para que estivessem à sua disposição.

— Como? — exclamou K., cheio de espanto, enquanto olhava os três personagens.

Esses jovens anêmicos e tão faltos de caráter que K. somente representava para si agrupados junto às fotografias eram realmente empregados de seu banco, mas não colegas; isso era afirmar demais e mostrava que existia uma lacuna na onisciência do Inspetor, porque a verdade é que eram empregados subalternos do banco. Como pudera K. ignorar isso? Estivera muito concentrado com o Inspetor e com os agentes de polícia para não ter reconhecido estes três personagens. Sim, um era o estúpido Rabensteiner, que sempre estava movendo as mãos; outro era o ruivo Kullich, de órbitas profundas; e o último, Kaminer, que não parava de sorrir de modo intolerável em razão da distorção crônica de um músculo facial.

— Bom dia — disse K. após um momento, enquanto estendia a mão aos três senhores, que se inclinaram corretamente diante dele. — Não os tinha reconhecido. De modo que iremos agora todos para o trabalho, não é verdade?

Os três senhores confirmaram rindo e com muito zelo, como se não estivessem esperando outra coisa em todo esse tempo; apenas que quando K. declarou que esquecera o chapéu em seu quarto, precipitaram-se todos, um atrás do outro, para apanhá-lo, o que atestava, sem dúvida, certa confusão. K. ficou de pé, calado, olhando-os através das duas portas abertas e comprovou que o último a sair era certamente o indiferente Rabensteiner, que se limitara a correr em elegante trotezinho. Por fim, Kaminer lhe trouxe o chapéu, e K. teve de dizer-se expressamente, coisa que além do mais tivera de fazer com frequência no banco, que o sorriso de Kaminer não era intencional; e, ainda mais, que Kaminer de modo algum podia sorrir com intenção. No vestíbulo a senhora Grubach abriu a porta para todo mundo; não parecia percebera sua falta; o olhar de K. tombou, como tão frequentemente acontecia, no cinturão do avental da mulher, que lhe cortava profundamente o corpo vigoroso de modo em verdade desnecessário. Já embaixo, e com o relógio na mão, K. resolveu tomar um automóvel para não aumentar inutilmente o atraso de meia hora que já perdera. Kaminer foi correndo até a esquina para trazer o carro. Os outros dois procuravam, visivelmente, distrair K.; de súbito, Kullich, apontando para a porta de entrada da casa em frente, chamou a atenção sobre o homenzarrão de barba avermelhada que acabava de aparecer; um pouco incomodado a princípio por mostrar-se agora em todo seu volume, o homem apoiava-se e se espremia contra a parede. Os dois velhos deviam achar-se ainda na escada. K. irritou-se contra Kullich porque este fixava sua atenção sobre aquele homem, ao qual já anteriormente ele mesmo vira e ao qual esperara ver nesse momento.

— Não fique olhando! — exclamou, sem perceber que tal modo de se expressar podia parecer surpreendente a homens livres. Contudo, não precisou dar nenhuma explicação, pois exatamente nesse instante chegou o automóvel, que todos ocuparam e que logo se pôs a andar. Então refletiu K. que não percebera em que momento se tinham ido o Inspetor e os guardas; o Inspetor lhe ocultara os três funcionários do banco, e agora estes ocultavam o Inspetor. Tal fato não atestava muita presença de espírito por parte de K., de modo que este se propôs observar-se com mais atenção a este respeito. Contudo, involuntariamente voltou a cabeça para ver se ainda poderia ver através da janelinha traseira do automóvel o Inspetor e os guardas. Entretanto, acabou por voltar outra vez a cabeça para diante e por instalar-se comodamente em um canto do carro, abandonando sua intenção de os descobrir. Apesar de seu aspecto, justamente nesse momento teria sido necessário que lhe infundissem ânimo, porém o caso é que aqueles senhores pareciam cansados; Rabensteiner olhava para a direita do automóvel; Kullich para a esquerda, de modo que apenas Kaminer estava ali à disposição de K., com aquele sorriso sobre o qual infelizmente o sentimento humanitário tornava impossível qualquer brincadeira.

Nos princípios desse ano, K., que ria maioria das vezes ficava em seu escritório até às nove, costumava passar as noites, ao deixar o seu trabalho, e quando isto lhe era possível, dando primeiro um passeio sozinho ou em companhia de algum funcionário do banco, indo depois a uma cervejaria onde, aproximadamente até as onze, ficava sentado a uma mesa reservada, na companhia de alguns senhores em geral mais velhos que ele. Está claro que havia exceções nesse programa quando, por exemplo, K. era convidado pelo diretor do banco, que muito apreciava a sua capacidade de trabalho e confiava nele, a dar um passeio de automóvel ou a comer em sua residência. K. costumava visitar uma vez por semana uma jovem chamada Elsa, a qual durante a noite até a madrugada servia como camareira em uma taverna e que, durante o dia, apenas recebia visitas em sua cama.

Aquela noite, porém — a jornada correra muito rapidamente em meio do ativo trabalho e de múltiplas e cordiais felicitações no dia de seu aniversário —, K. preferiu dirigir-se diretamente para sua casa. Em todas as pequenas pausas de seu trabalho daquele dia, K. pensara no assunto, de modo que sem que o soubesse com exatidão parecia-lhe que os acontecimentos dessa manhã deviam ter ocasionado uma grande desordem na pensão da senhora Grubach e que sua presença era necessária para restaurar a ordem. Mas desde que esta fosse restaurada, desapareceria sem dúvida todo rastro daqueles acontecimentos, de modo que a vida voltaria a recobrar sua marcha antiga. Pelo que dizia respeito aos três empregados, nada havia a recear: tinham voltado a se confundir entre o numeroso pessoal do banco; além do mais, K., que os fizera vir diversas vezes a seu escritório, ora sozinhos, ora juntos, apenas com o fito de observá-los, não percebera neles a menor mudança, de modo que os despedira tranquilamente.

Quando por volta das dez da noite chegou à casa em que vivia, deparou na porta de entrada com um rapaz que, de pernas abertas, ali estava de pé a fumar seu cachimbo.

— Quem é você? — perguntou imediatamente K., aproximando o rosto ao do jovem, pois não se enxergava muito bem na penumbra do saguão.

— Sou o filho do porteiro, senhor — retrucou o jovem, tirando o cachimbo da boca e pondo-se de lado.

— O filho do porteiro? — perguntou K., batendo impacientemente com a ponta de seu bastão no solo.

— Você quer alguma coisa? Quer que eu chame o meu pai?

— Não, não — disse K., com certo tom de indulgência ria voz, como se, tendo o rapaz feito algo de mal, K. o tivesse perdoado. — Está bem — disse por fim, prosseguindo o seu caminho, mas antes de subir pela escada voltou-se ainda uma vez para fitar o jovem.

K. poderia ter ido diretamente ao seu quarto; entretanto, queria antes falar com a senhora Grubach a cuja porta bateu. A patroa estava sentada a uma mesa junto a um montão de meias velhas que estava cerzindo. K. desculpou-se com ar distraído, escusando-se por chegar tarde, porém a senhora Grubach mostrou-se muito cordial e não quis ouvir qualquer desculpa, senão que até lhe disse que estava sempre pronta a falar com ele, visto que, como bem sabia, K. era para ela o melhor, o preferido, dos hóspedes. K. lançou um olhar em volta e constatou que tudo estava novamente em sua antiga disposição; até haviam levado a bandeja do desjejum que nessa manhã estivera sobre a mesinha perto da janela. "As mãos das mulheres fazem muitas coisas silenciosamente", pensou; ele mesmo, talvez, teria quebrado a bandeja, mas com toda certeza não teria conseguido levá-la dali. Contemplou então a senhora Grubach com certa sensação de agradecimento.

— Por que a senhora trabalha até tão tarde? — perguntou K. Agora estavam ambos sentados à mesa; K. de quando em quando enfiava a mão no monte de meias.

— Tenho muito trabalho — retrucou a senhora Grubach. — Durante o dia tenho de atender aos meus inquilinos, de modo que somente me ficam as noites para arrumar minhas coisas.

— Por minha causa a senhora teve hoje, sem dúvida, um trabalho extraordinário, não é mesmo?

— E por quê? — perguntou a senhora Grubach, animando-se um pouco, enquanto deixava sobre o regaço a meia que tinha na mão.

— Refiro-me aos homens que vieram esta manhã.

— Ah, sim — exclamou, voltando à sua calma anterior. — Sim, porém isso não me deu um trabalho especial.

K. ficou olhando quietamente como sua patroa voltava a apanhar a meia do regaço. "Parece estar admirada de que justamente eu", pensou K., "lhe fale disto. Sem dúvida julga que não é correto que eu mesmo fale do assunto, razão pela qual é mais necessário que eu assim proceda. O mal é que tenha de falar destas coisas apenas com uma anciã."

— Contudo, o que aconteceu esta manhã certamente lhe deu algum trabalho — terminou por afirmar K. —, mas isso não tornará a acontecer.

— Não, não pode tornar a acontecer — replicou ela com vivacidade e sorrindo para K. com ar um tanto triste.

— A senhora acredita nisso verdadeiramente? — perguntou K.

— Sim — respondeu a senhora Grubach em voz mais baixa —, mas não precisa impressionar-se com isso. O que não acontece neste mundo? Visto que o senhor me fala tão confiadamente, senhor K., tenho de lhe confessar que estive escutando um pouco por trás da porta, e que alguma coisa também os guardas me contaram. Trata-se de sua felicidade, e isso é algo que me chega realmente ao coração, talvez mais do que devia, porque, a dizer a verdade, não sou senão a sua patroa. E bem, ouvi alguma coisa, mas de modo algum posso dizer que se trate de coisa particularmente grave. É certo que o senhor está detido, mas não detido como um ladrão; quando se detém a alguém como ladrão, então o assunto é grave, mas esta detenção... perdoe-me o senhor se digo alguma bobagem, ocorre-me que se trata de algo especial, de algo acadêmico, que por certo de nenhum modo compreendo, mas que, por outro lado, não tenho também a obrigação de compreender. — A senhora não disse nenhuma bobagem, senhora Grubach, pois a verdade é que eu mesmo compartilho a sua opinião, em parte; apenas que eu ouso levar a minha apreciação sobre tudo isto mais longe que a senhora, já que tenho este assunto como algo não só especial e acadêmico, mas como uma pura ninharia. Apanharam-me de surpresa. Se quando despertei não me tivesse deixado perturbar pela ausência de Ana, se me tivesse levantado e ido diretamente até a senhora sem tomar em consideração a interpretação que alguém pudesse dar aos meus passos, se por exceção tivesse comido o meu desjejum na cozinha, fazendo com que a senhora me levasse para lá do meu quarto as minhas roupas, em resumo, se me tivesse comportado razoavelmente, nada disto teria acontecido, pois teria ficado afogado antes de concretizar-se. Mas o caso é que se está tão pouco prevenido! No banco, por exemplo, sempre estou preparado, de modo que ali não teria sido possível acontecer-me nada semelhante; ali tenho sempre à minha disposição um empregado, o telefone geral e o telefone particular que se encontram sobre a minha escrivaninha, a todo instante está chegando gente, clientes e empregados, e especialmente ali me encontro sempre na engrenagem do trabalho, pelo que conservo a minha presença de espírito; confesso-lhe que até teria verdadeiro prazer em achar-me ali em uma situação como a desta manhã. Enfim, tudo já se passou e não gostaria de voltar a falar nisso; apenas queria conhecer a sua opinião sobre o assunto, a opinião de uma mulher razoável, de modo que muito me alegro que estejamos de acordo. Mas agora teríamos de nos apertar as mãos; sinto necessidade de confirmar com um aperto de mãos tal acordo.

"Quererá apertar-me a mão? O Inspetor não me estendeu a sua", pensou K. examinando atentamente a mulher. Esta se pusera em pé porque também K. o fizera; tinha um aspecto um tanto comovido pois não chegara a entender tudo o que K. lhe dissera. Devido à sua perturbação, acabou por dizer algo que com toda a certeza não teria querido dizer e que, além do mais, não era inteiramente cabível:

— Não tome isto tão a peito, senhor K. — declarou a senhora Grubach, como se tivesse lágrimas na voz, e esquecendo-se, imediatamente, do aperto de mãos.

— Que eu saiba, não tomo este assunto demasiadamente a sério — retrucou K., sentindo-se repentinamente cansado e percebendo a inutilidade dos estímulos dessa mulher.

Quando já estava junto à porta, K. ainda perguntou:

— A senhorita Burstner está em casa?

— Não — retrucou a senhora Grubach, sorrindo para atenuar a secura da resposta; mas logo se apressou a explicar, embora tardiamente, com razoável simpatia: — Está no teatro. Quer o senhor falar com ela? Quer que lhe diga alguma coisa?

— Não, simplesmente desejava trocar algumas palavras com ela.

— Infelizmente não sei quando voltará; quando vai ao teatro costuma vir tarde.

— Não tem importância — disse K., que já se tinha voltado com a cabeça inclinada para a porta para sair —; apenas queria desculpar-me por ter-lhe ocupado esta manhã seu quarto.

— Não é necessário, senhor K., o senhor é muito cuidadoso; a senhorita Burstner nada sabe do que aconteceu. Saiu de casa hoje muito cedo e ainda não voltou; além do mais, já pus em ordem seu quarto. Veja-o o senhor mesmo.

E assim dizendo abriu a porta do quarto da senhorita Burstner.

— Obrigado, acredito na senhora — retrucou K. sem deixar por isso de aproximar-se da porta aberta. A lua iluminava placidamente o quarto a escuras. A julgar pelo que se podia ver, tudo voltara a colocar-se em seu lugar; nem mesmo a blusa pendia já da aldraba da janela. As almofadas do leito, iluminadas em parte pela luz da lua, pareciam erguer-se altas.

— A senhorita Burstner volta geralmente muito tarde — disse K, olhando fixamente a senhora Grubach como se esta fosse responsável de tal fato.

— Como toda pessoa jovem! — retrucou a senhora Grubach em tom de desculpa.

— Evidente, evidente — exclamou K. —; mas assim se pode ir longe demais.

— É verdade — concordou a senhora Grubach. — Quanta razão tem o senhor, senhor K.! Talvez justamente neste caso. Claro está que não é meu propósito censurar a senhorita Burstner; é uma boa moça, agradável, cordial, ordeira, pontual, trabalhadora, qualidades que estimo muito; mas a verdade é que precisaria ser mais ardilosa, mais discreta. Neste mês já a vi duas vezes em ruas afastadas acompanhada cada vez por um senhor diferente. Isto é algo que eu lamento muito e por Deus lhe asseguro que somente ao senhor o conto, senhor K. Mas não poderei deixar de falar também com ela mesma a respeito de seu procedimento. Além disso não é apenas isso o que me traz em suspeitas.

— A senhora está inteiramente equivocada — retrucou K. cheio de cólera e sentindo-se quase impotente para escondê-la —, além do mais, visivelmente a senhora interpretou mal as minhas observações a respeito da senhorita Burstner; não quis dizer isso. Previno-a que é melhor que se abstenha de falar com ela disso, pois a senhora está laborando em completo erro; conheço perfeitamente a senhorita Burstner, de modo que estou em condições de afirmar que de modo algum é verdade o que a senhora diz. Claro está que talvez eu exorbite, pois não vou impedir a senhora de lhe dizer aquilo que mais lhe agrade. Boa noite.

— Senhor K.! — exclamou a senhora Grubach em tom de súplica, enquanto se precipitava apressada atrás de K., o qual já havia aberto a porta de seu quarto. — De modo algum falarei com a senhorita; evidentemente, primeiro é preciso que continue a observá-la; apenas ao senhor lhe confiei o que sabia. Depois, esta é uma questão que deveria importar a cada um dos inquilinos, se é que desejam viver em uma pensão respeitável. Todos os meus esforços são no sentido de o conseguir.

— Respeitável? — exclamou K. através da abertura da porta. — Se a senhora quer ter uma pensão respeitável deve começar por desfazer-se de mim.

Então fechou a porta com um repelão sem mais atender aos suaves toques que ainda deu nela a senhora Grubach.

Embora ainda não tivesse vontade de dormir, resolveu ficar ainda um momento acordado sem recostar-se e aproveitar essa oportunidade para fixar a hora em que retornava a sua casa a senhorita Burstner. Talvez fosse também possível, por menos cabível que parecesse, conversar com ela algumas palavras. Colocou-se junto à janela apertando os olhos cansados e num momento até chegou a pensar em castigar a senhora Grubach convencendo a senhorita Burstner que abandonasse com ele essa casa. Mas imediatamente pareceu-lhe exagero e até chegou a conceber a suspeita de que na realidade pretendia ele abandonar a pensão devido aos acontecimentos dessa manhã. Nada seria mais insensato, inútil e desprezível que o fazer.

Quando se cansou de olhar a rua deserta através de sua janela, estendeu-se sobre o canapé depois de ter virado um pouco a porta que dava para o vestíbulo para assim poder, de sua posição, ver quem entrava na casa. Ficou ali estendido sobre o canapé fumando um cigarro até perto das onze. Depois se ergueu, não para sair à rua, mas para passear pelo vestíbulo como se isso pudesse apressar a chegada da senhorita Burstner. Não se sentia particularmente atraído por ela, pois nem mesmo recordava exatamente que aspecto tinha, mas, como queria falar-lhe, irritava-se ao constatar que a moça ao chegar tão tarde contribuía para que também o fecho desse dia estivesse cheio de inquietude e confusão. Tinha ela a culpa, do mesmo modo, de que naquela noite K. não tivesse comido e de que tampouco tivesse feito sua projetada visita a Elsa. É certo que poderia fazer ambas as coisas se ele agora fosse à taberna onde Elsa servia como camareira. Decidiu fazê-lo mais tarde, depois de ter falado com a senhorita Burstner.

Já passavam de onze horas e meia quando se escutaram passos na escada da casa. K., que imerso em seus pensamentos estivera passeando pelo vestíbulo a grandes passadas como se se achasse em sua própria casa, escondeu-se então atrás da porta. Quem chegava era a senhorita Burstner. Ao abrir a porta de seu quarto colocou, tremendo de frio, um chalé sobre os delgados ombros. Se deixasse passar esse momento, K., certamente, sendo já mais de meia-noite, não poderia visitá-la em seu, quarto; tinha portanto de lhe falar nesse preciso instante, mas desgraçadamente se esquecera de acender a luz em seu quarto, de modo que ao sair de seu quarto às escuras teria forçosamente que assustar a moça. Sem saber o que fazer, e como não havia tempo a perder, K. sussurrou através da abertura de sua porta:

— Senhorita Burstner.

Sua voz soou antes como uma súplica do que como um chamado.

— Há alguém aí? — perguntou a senhorita Burstner olhando com olhos arregalados ao redor de si.

— Sou eu — disse K., adiantando um passo.

— Ah, é o senhor K.! — exclamou a senhorita Burstner, com um sorriso. — Boa noite — disse, estendendo-lhe a mão.

— Apenas queria falar-lhe algumas palavras. Permite-me fazê-lo agora?

— Agora? — perguntou a senhorita Burstner. — Precisa ser agora mesmo? É um pouco estranho, não acha?

— É que eu a espero desde as nove horas.

— Ah, muito bem. Mas eu estava no teatro, de modo que não o sabia.

— Acontece que os motivos pelos quais tenho de lhe falar apenas apareceram esta manhã.

— Sim? Pois não tenho nenhuma observação a fazer, a não ser que estou terrivelmente cansada. Venha, pois, um instante ao meu quarto. Aqui de modo algum podemos falar porque despertaríamos todo o mundo, o que seria mais desagradável para mim do que para todos os outros. Espere aqui, e quando eu acender a luz de meu quarto você apague esta.

K. fez assim e depois ficou esperando que a senhorita Burstner o convidasse novamente a entrar em seu quarto.

— Sente-se — disse-lhe, apontando uma poltrona. Mas ela mesma ficou de pé perto de seu leito, apesar do cansaço de que falara; nem sequer tirou o chapéu enfeitado com flores em profusão.

— Que queria dizer-me? Afirmo-lhe que estou verdadeiramente curiosa — disse, cruzando suavemente as pernas.

— Talvez você diga — começou a dizer K. — que a coisa não é tão urgente para que falemos dela agora mesmo, mas...

— Jamais faço caso de tais discursos de introdução — disse de repente a senhorita Burstner.

— Pois isso torna mais fácil a minha tarefa — retrucou K. — Pois bem, esta manhã, de certo modo por culpa minha, foi necessário trazer alguma desordem ao seu quarto; fizeram-no uns estranhos, muito a contragosto meu, e contudo, como já disse, por culpa minha; queria portanto apresentar-lhe minhas escusas por isso.

— Em meu quarto? — perguntou a senhorita Biirstner, examinando atentamente K. em vez de observar o quarto.

— Isso mesmo — disse K., e somente nesse momento ambos se fitaram pela primeira vez nos olhos. — O modo como aconteceu não é nem mesmo digno de que se fale nele.

— Contudo, o negócio é interessante, não acha? — perguntou a senhorita Biirstner.

— Não — retrucou K.

— Então — declarou a senhorita Biirstner —, não desejo meter-me em segredos alheios; se você admite que o assunto carece de importância, nada tenho a objetar. Recebo com muito gosto as desculpas que me apresenta, especialmente porque não vejo a menor marca de desordem em meu quarto.

Colocando as palmas das mãos nos quadris deu um giro pela câmara. Ao chegar junto à esteira onde estavam pregadas as fotografias, deteve-se.

— Ah, mas veja. Alguém mudou de lugar as minhas fotografias. Isso não se faz. Quer dizer então que alguém entrou realmente em meu quarto?

K. confirmou com um movimento de cabeça enquanto em seu interior maldizia ao empregado Kaminer que não conseguia reprimir seu tolo costume de mexer em tudo.

— É estranho que me veja obrigada a proibir-lhe algo que você mesmo deveria proibir-se — disse a senhorita Biirstner —, quer dizer, que entre em meu quarto durante a minha ausência.

— Já o expliquei, senhorita — disse K., aproximando-se também das fotografias. Não fui eu quem mudou de lugar as fotografias; mas, já que não me crê, terei de lhe confessar então que a comissão de inquérito trouxe com ela três empregados do banco, um dos quais, ao qual farei expulsar da instituição na primeira oportunidade que se apresente, provavelmente tirou as fotografias do lugar. Sim, aqui esteve uma comissão de inquérito — acrescentou K. ao ver o olhar interrogador da senhorita Biirstner.

— Por sua causa? — perguntou a senhorita Biirstner.

— Sim — retrucou K.

— Não! — exclamou a moça, pondo-se a rir.

— Mas, sim — afirmou K. — Acredita então que sou inocente?

— Inocente...? — exclamou a senhorita Biirstner. — Não desejo agora pronunciar um julgamento, talvez cheio de consequências; além do mais, eu não o conheço; apenas sei que para que as autoridades enviem a alguém uma comissão investigadora é preciso que se trate de um grande criminoso. Mas, como eu o vejo em liberdade (ao menos me é lícito inferir de sua tranquilidade que não fugiu do cárcere), deduzo que não pode ter cometido um grande crime.

— Sim — disse K. —, mas a comissão de inquérito pode ter reconhecido que sou inocente ou pelo menos não tão culpável como supusera.

— Efetivamente, pode ser — replicou a senhorita Burstner, olhando para K. atentamente.

— Veja você — disse K. —, sem dúvida, não tem grande experiência em coisas da justiça.

— Não, não a tenho — declarou a senhorita Burstner —; coisa que tive de lamentar mais de uma vez, pois eu gostaria de conhecer tudo, e precisamente as questões judiciais me interessam em alto grau. A justiça tem um particular poder de atração, não é mesmo?, mas, como no próximo mês passarei a trabalhar no escritório de um advogado, logo orientarei meus conhecimentos nesse sentido.

— Ah, ora muito bem — disse K. —; então talvez possa você ajudar-me um pouco em meu processo.

— Bem, poderia ser — disse a senhorita Burstner —; por que não? Gosto de aplicar os meus conhecimentos.

— Falo-lhe seriamente — exclamou K. —, ou pelo menos com a atitude meio séria que você mesma assume. Minha causa é demasiado insignificante para que precise recorrer a um advogado, mas sem dúvida precisarei de um bom conselheiro.

— Muito bem, mas, se eu tenho de ser sua conselheira, tenho forçosamente de saber do que se trata — objetou a senhorita Burstner.

— Aí está o busílis — retrucou K. —, pois eu mesmo não o sei.

— Então está se divertindo comigo — disse a senhorita Burstner, com ar de grande desencanto —. Para fazê-lo era absolutamente desnecessário que escolhesse as altas horas da noite.

E assim dizendo, afastou-se de junto das fotografias onde antes haviam estado reunidos por bastante tempo.

— Mas, não, senhorita — protestou K. —, não estou chalaceando. E pensar que não quer,acreditar-me! Já lhe disse tudo o que sei e mesmo mais do que sei, pois a dizer a verdade não se tratava de uma comissão investigadora; chamo-a assim porque algum nome preciso dar-lhe. Não se realizou aqui nenhuma investigação. Apenas fui detido, mas, isso assim, fê-lo uma comissão.

A senhorita Burstner sentou-se sobre a poltrona e tornou a rir.

— Mas, que aconteceu então? — perguntou.

— Algo terrível — respondeu K., que porém não pensava de modo algum naquele assunto, mas sim nesse momento sentia-se singularmente atraído pelo aspecto da senhorita Burstner, que tinha o rosto apoiado em uma das mãos (seu cotovelo descansava sobre o almofadão da poltrona) enquanto que com a outra acariciava lentamente seus quadris.

— Isso que me diz é demasiado geral — disse a senhorita Burstner.

— O que é demasiado geral? — perguntou K. Mas depois, compreendendo aquilo a que ela se referia, perguntou-lhe: — Quer que lhe faça uma demonstração do acontecido?

K. sentia a necessidade de movimentar-se um pouco, mas não queria partir.

— Estou muito cansada — declarou a senhorita Burstner.

— É porque você voltou muito tarde — disse K.

— E agora me faz censuras. Mas eu o mereço porque não devia tê-lo deixado entrar em meu quarto. Nem mesmo era necessário, como fica demonstrado.

— Sim, era necessário. Você já vai ver — disse K. — Posso afastar a mesinha de noite de perto de sua cama?

— Mas, que lembranças você tem! — disse a senhorita Burstner. — Está visto que não.

— Então não lhe poderei mostrar nada — disse K., tomado de agitação, como se tivesse sofrido um prejuízo incalculável.

— Pois bem; se para a demonstração de sua explicação precisa mover a mesinha de seu lugar, faça-o, mas sem ruído — disse a senhorita Burstner, que a fim de um momento acrescentou com voz fraca: — Estou tão cansada que lhe permito fazer mais do que é lícito,

K. empurrou a mesinha até o centro do quarto e colocou-se por trás dela.

— Você teria de imaginar bem a disposição dos personagens; você verá, é muito interessante. Eu sou o Inspetor: ali, sobre esse baú, estão sentados dois guardas, e, reunidos junto às fotografias, estão de pé três jovens. Da aldraba da janela pende uma blusa branca que apenas menciono como dado acessório. E agora começa a função. Ah, sim, porém esqueço-me de mim mesmo, o personagem mais importante! Está bem, pois, eu estou aqui de pé, frente à mesinha. O Inspetor acha-se sentado em uma posição mais que cômoda; cruzou as pernas deixando cair um braço por trás do encosto da cadeira. Em resumo, é um grosseiro. E agora sim começa realmente a função. O Inspetor chama-me como se tivesse de me acordar. Sim, dá um grito, e para que você possa compreendê-lo inteiramente é preciso, por desgraça, que eu também me ponha a gritar; além do mais, é apenas meu nome o que o Inspetor grita de tal modo.

A senhorita Burstner, que o ouvia sorridente, levou então o dedo indicador à boca para impedir que K. gritasse, mas já era muito tarde. K. estava tão absorvido pelo seu papel que gritou lentamente:

— Josef K.!

Contudo, não o fez com voz tão alta como ameaçara, mas sim de tal modo que a voz emitida, depois de cessar subitamente, pareceu estender-se lenta, muito lentamente por toda a casa.

Ouviu-se então que alguém chamava à porta do quarto contíguo várias vezes com golpes breves, fortes e regulares. A senhorita Burstner empalideceu e levou a mão ao coração. K. ficou fortemente impressionado, especialmente porque ainda um momento antes era absolutamente incapaz de pensar em outra coisa que não fosse o que acontecera naquela manhã e a moça que, por causa dele, se via misturada em tais acontecimentos. Apenas conseguira K. recobrar-se, quando a senhorita Burstner saltou para ele e apanhou-o pela mão.

— Não tema nada — sussurrou-lhe K. ao ouvido. — Eu arranjarei tudo; mas, quem pode ser? Aqui ao lado não existe mais do que o salão onde ninguém dorme.

— Mas não — disse a senhorita Burstner cochichando e aproximando-se do ouvido de K. —. Desde ontem dorme ali um sobrinho da senhora Grubach; é um capitão que tem de dormir no salão porque não existe nenhuma outra sala disponível. Também eu o tinha esquecido. Por que precisava você gritar? Ah, quão infeliz eu sou!

— Não tem você nenhum motivo para sentir-se infeliz — disse K., beijando-a na fronte quando ela%se deixou cair sobre os almofadões da poltrona.

— Vá-se embora, vá-se?— disse ela, pondo-se apressadamente em pé. — Saia daqui, saia: Que pretende? Não percebe que ele está escutando à porta? Que escuta tudo? Ah, como você me atormenta!

— Não me irei — disse K. — antes que eu a veja um tanto mais tranquila. Venha, vamos a esse outro canto do quarto; ali não poderá escutar-nos.

A senhorita Burstner deixou-se levar até um canto da peça.

— Pense que se trata, isso sim, de um incidente pouco agradável para você, porém de modo algum de algo perigoso — disse K. — Bem sabe que a senhora Grubach, que nesta questão é quem tem de dizer-lhe tudo, justamente pelo fato de ser seu sobrinho o capitão, me estima muito e crera tudo quanto eu lhe diga. Por outro lado, ela depende de mim, visto que eu lhe emprestei uma soma considerável de dinheiro. Admitirei qualquer desculpa que você apresente para explicar a minha presença aqui, em seu quarto, embora na verdade seria um tanto inútil esforçar-se já que eu garanto que a senhora Grubach não somente aceitaria em público qualquer explicação que déssemos, senão que a creria real e sinceramente. Não precisa você preocupar-se por mim; se quiser, diremos que eu a assaltei; sim, diremos isso à senhora Grubach, a qual acreditará sem perder, porém, sua confiança em mim, porque assim é o carinho que me tem.

A senhorita Burstner olhava para o chão e ficava calada, imersa em seus pensamentos.

— Por que não haveria de crer a senhora Grubach que eu me atirei em cima de você? — ajuntou K., enquanto contemplava o cabelo ruivo da moça dividido por uma risca e firmemente recolhido em dois rolos. K. julgou que a moça ia dirigir o olhar para ele, mas ela disse, sem afastar a vista do solo:

— Perdoe-me; assustou-me especialmente essa maneira súbita de bater à porta, sim, isso me assustou mais do que as consequências que pudesse ter a presença do capitão no salão. Havia ocorrido um silêncio tão profundo depois que você deu o seu grito que aquele bater na porta, tão súbito, me aterrorizou; além do mais, eu estava muito perto dessa porta; era como se estivessem batendo junto de mim. Quanto às suas propostas, fico-lhe reconhecida, mas isso não significa que as aceite. Posso perfeitamente assumir ante quem quer que seja a responsabilidade de tudo quanto aconteça em meu quarto. Admira-me que você não tenha percebido quão ofensivas são, em certo sentido, suas propostas, não obstante as excelentes intenções que as inspiram e que, de pronto, não deixo de reconhecer. Mas agora, vá-se embora, deixe-me sozinha; tenho agora maior necessidade que nunca de estar sozinha. Você me pedira uns poucos minutos de conversação que se transformaram em meia hora, se não mais.

K. segurou-a pela mão e depois pelo punho.

— Não estará aborrecida comigo? — perguntou. A senhorita Burstner retirou a mão e retrucou:

— Não, não; jamais me aborreço com qualquer coisa.

K. tornou a segurar-lhe o punho. Desta vez ela consentiu-lhe e assim se deixou levar até a porta. K. estava firmemente decidido a partir. Mas ao chegar à porta, como se não tivesse esperado encontrar ali uma porta, deteve-se de repente, momento que a senhorita Burstner aproveitou para desembaraçar-se de K., para abrir a porta e deslizar até o vestíbulo, de onde em voz baixa chamou K.:

— Agora, venha, peço-lhe. Olhe — disse, mostrando a porta do dormitório do capitão, por baixo da qual brilhava um rasto de claridade —, acendeu a luz e certamente nos vigia.

— Já vou — disse K., saindo precipitadamente do quarto; então, tomou-a em seus braços, beijou-a na boca e depois em todo o rosto qual um animal sedento que enterrasse sua língua avidamente em uma fonte de água que por fim encontrasse. Por último beijou-a no pescoço, na garganta, onde manteve longamente os lábios. Um ruído vindo do quarto do capitão fez com que se sobressaltasse.

— Agora eu irei — disse, desejando chamar a senhorita Burstner pelo seu nome de batismo, mas o caso é que o ignorava. Ela consentiu com um cansado movimento de cabeça e, já de costas para afastar-se de K., abandonou-lhe a mão para que este a beijasse como se não se tivesse apercebido do que acontecera; por fim, dirigiu-se curvada para o seu quarto. Pouco depois K. estava estendido no leito. Dormiu muito depressa, mas antes de conciliar o sono meditou ainda alguns breves instantes sobre seu procedimento; estava satisfeito com o que fizera, mas surpreendeu-o não o estar ainda mais; quanto à senhorita Burstner, K. alimentava sérios cuidados por causa do capitão.

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