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Primeiro Capítulo: "Admirável Mundo Novo" de Aldous Huxley

Capítulo Primeiro

Admirável Mundo Novo Texto Integral
ISBN:
 978-85-66798-29-6
 210 páginas

Preço: R$ 4,99

EPUB

Um edifício cinzento e atarracado, de apenas trinta e quatro andares, tendo por cima da entrada principal as palavras:


CENTRO DE INCUBAÇÃO E DE CONDICIONAMENTO DE LONDRES-CENTRAL

E, num escudo, a divisa do Estado Mundial:


COMUNIDADE, IDENTIDADE, ESTABILIDADE

Enorme sala do andar térreo estava virada ao norte. Apesar do Verão que reinava no exterior, apesar do calor tropical da própria sala, apenas fracos raios de uma luz crua e fria entravam pelas janelas. As batas dos trabalhadores eram brancas, e as suas mãos, enluvadas em borracha pálida, de aspecto cadavérico. A luz era gelada, morta, espectral, Apenas dos cilindros amarelos dos microscópios ela recebia um pouco de substância rica e viva, que se espalhava ao longo dos tubos como manteiga.

— Isto — disse o Diretor, abrindo a porta — é a Sala da Fecundação.

No momento em que o Diretor da Incubação e do Condicionamento entrou na sala, trezentos fecundadores, curvados sobre os seus instrumentos, estavam mergulhados naquele silêncio em que apenas se ousa respirar, naquela cantilena ou assobio inconsciente com que se traduz a mais profunda concentração. Um grupo de estudantes recém-chegados, muito novos, rosados e imberbes, comprimiam-se, possuídos de uma certa apreensão e talvez de alguma humildade, atrás do Diretor. Cada um deles levava um caderno de notas, no qual, cada vez que o grande homem falava, rabiscavam desesperadamente. Bebiam a sua sabedoria na própria fonte, o que era um raro privilégio. O D.I.C. de Londres-Central empenhava-se sempre em conduzir pessoalmente a visita dos novos alunos aos diversos serviços.

"Unicamente para lhes dar uma ideia de conjunto", explicava-lhes ele, pois era necessário, evidentemente, que possuíssem um simulacro de ideia de conjunto, já que se desejava que fizessem inteligentemente o seu trabalho. Era conveniente, porém, que essa ideia fosse o mais resumida possível se se quisesse que, mais tarde, eles fossem membros disciplinados e felizes da sociedade, dado que os pormenores, como se sabe, conduzem à virtude e à felicidade, e as generalidades são, sob o ponto de vista inteletual, males inevitáveis. Não são os filósofos, mas sim aqueles que se entregam às construções de madeira e às coleções de selos, que constituem a estrutura da sociedade.

— Amanhã — acrescentou, dirigindo-lhes um sorriso cheio de bonomia, mas ligeiramente ameaçador — começarão a trabalhar seriamente e não terão tempo para perder com generalidades. Daqui até lá...

Daqui até lá era um privilégio. Da própria fonte para o caderno de apontamentos. Os rapazes rabiscavam febrilmente.

Alto, tendendo para a magreza, mas direito, o Diretor caminhou pela sala. Tinha o queixo alongado e dentes fortes, um pouco proeminentes, que mal conseguia cobrir, quando não falava, com os lábios grossos, de curva acentuada. Velho ou novo? Trinta anos? Cinquenta? Cinquenta e cinco? Era difícil dizer. Isso também não tinha importância alguma; nesse ano de estabilidade, nesse ano de 632 de N.F., não ocorria a ninguém fazer tal pergunta.

— Vou começar pelo princípio — disse o D.I.C. E os estudantes mais zelosos anotaram o fato nos cadernos: "Começar pelo princípio."

— Isto aqui — apontou — são as incubadoras. — E, abrindo uma porta de proteção térmica, mostrou-lhes os suportes de tubos empilhados uns sobre os outros e cheios de tubos de ensaio numerados. — O fornecimento semanal de óvulos. Mantidos — explicou — temperatura normal do sangue, enquanto os gametas masculinos — abriu outra porta — devem ser conservados a trinta e cinco graus, em vez de trinta e sete. A temperatura total do sangue esteriliza. Carneiros envoltos em termogênio não procriam.

Sempre apoiado às incubadoras, forneceu-lhes uma curta descrição do moderno processo da fecundação, enquanto os lápis rabiscavam ilegivelmente as páginas, de um lado para o outro. Falou-lhes primeiro, evidentemente, da introdução cirúrgica, — Esta operação é suportada voluntariamente para bem da sociedade, sem esquecer que proporciona uma gratificação equivalente a seis meses de ordenado. — Continuou com uma breve exposição da técnica de conservação do ovário, separado em estado vivo e pleno desenvolvimento; fez considerações sobre a temperatura, a salinidade e a viscosidade ótimas; aludiu ao líquido em que se conservam os óvulos destacados e chegados à maioridade, e, conduzindo os seus alunos às mesas de trabalho, mostrou-lhes como se retirava esse líquido dos tubos de ensaio; como o faziam cair gota a gota sobre as lâminas de vidro para preparações microscópicas especialmente aquecidas; como os óvulos que ele continha eram examinados sob o ponto de vista dos caracteres anormais, contados e transferidos para um recipiente poroso; como — e conduziu-os então a observar a operação — esse recipiente era imerso num caldo tépido contendo espermatozóides que aí nadavam livremente à "concentração mínima de cem mil por milímetro cúbico", notou ele, e como, ao fim de dez minutos, o recipiente era retirado do líquido e o seu conteúdo novamente examinado; como, se ainda aí restassem óvulos não fecundados, o mergulhavam uma segunda vez e, em caso de necessidade, uma terceira; como os óvulos fecundados voltavam para as incubadoras; aí os Alfas e os Betas eram conservados até à sua definitiva colocação em provetas, enquanto os Gamas, os Deltas e osÍpsilons eram retirados apenas ao fim de trinta e seis horas, para serem submetidos ao processo Bokanovsky.

— Ao processo Bokanovsky — repetiu o Diretor. E os estudantes sublinharam essas palavras nos cadernos.

Um ovo, um embrião, um adulto: o processo normal. Mas um ovo bokanovskyzado tem a propriedade de germinar, de proliferar, de se dividir de oito a noventa e seis rebentos, e cada rebento tornar-se-á num embrião perfeitamente formado, e cada embrião num adulto normal. Desenvolvem-se assim noventa e seis seres humanos onde antes apenas se desenvolvia um só. O progresso.

— A bokanovskyzação — concluiu o D.I.C. — consiste essencialmente numa série de interrupções do desenvolvimento. Detemos o crescimento normal e, embora pareça paradoxal, o ovo reage proliferando.

"Reage proliferando." Os lápis atarefaram-se.

O Diretor estendeu o braço. Num transportador de movimento muito lento, um suporte cheio de tubos de ensaio entrava numa grande caixa metálica e um outro saía. Havia um ligeiro ruído de máquinas. Os tubos levavam oito minutos a atravessar a caixa de uma ponta à outra — explicava-lhes — ou sejam oito minutos de exposição aos raios-X duros, que é, aproximadamente, o máximo que um ovo pode suportar. Um pequeno número morria; dos outros, os menos influenciados dividiam-se em dois; a maioria proliferava em quatro rebentos, alguns em oito. Eram então todos novamente enviados para as incubadoras, onde os rebentos começavam a desenvolver-se; depois, ao fim de dois dias, eram subitamente submetidos ao frio e à interrupção de crescimento. Os rebentos dividiam-se, por sua vez, em dois, quatro, oito; depois, tendo proliferado, eram submetidos a uma dose de álcool quase mortal e, como consequência, de novo proliferavam, sendo em seguida deixados em paz, rebentos de rebentos de rebentos, pois toda e qualquer suspensão de crescimento era então, geralmente, fatal. Nessa altura o primitivo ovo tinha muitas probabilidades de se transformar num número de embriões entre oito e noventa e seis, "o que é, devem concordar, um prodigioso aperfeiçoamento em relação à Natureza. Gêmeos idênticos, mas não em pequenos grupos de dois ou três, como nos antigos tempos da reprodução vivípara, quando um ovo se dividia, por vezes acidentalmente, mas sim por dúzias, por vintenas, de uma só vez".

— Por vintenas — repetiu o Diretor, abrindo largamente os braços, como se fizesse ricas ofertas a uma multidão. — Por vintenas. Mas um estudante foi bastante tolo para perguntar em que consistia a vantagem.

— Meu caro amigo! — O Diretor voltou-se vivamente para ele. — Então não vê? Não vê — Levantou a mão e tomou uma atitude solene. — O processo Bokanovsky é um dos máximos instrumentos da estabilidade social.

— Homens e mulheres conformes ao tipo normal, em grupos uniformes. Todo o pessoal de uma pequena fábrica constituído pelos produtos de um único ovo bokanovskizado. Noventa e seis gêmeos idênticos fazendo trabalhar noventa e seis máquinas idênticas! — A sua voz era quase vibrante de entusiasmo. — Pela primeira vez na história, sabe-se perfeitamente para onde se caminha. — E citou a divisa planetária: "Comunidade, Identidade, Estabilidade." — Grandiosas palavras. Se pudéssemos bokanovskizar indefinidamente, todo o problema estaria resolvido. Resolvido por Gamas do tipo normal, por Deltas invariáveis, por Ípsilons uniformes. Milhões de gêmeos idênticos. O princípio da produção em série aplicado, enfim, à biologia. Mas, infelizmente — o Diretor agitou a cabeça — não podemos bokanovskizar indefinidamente.

Noventa e seis, tal parecia ser o limite; setenta e dois, uma boa média. Fabricar com o mesmo ovário e os gâmetas do mesmo macho o maior número possível de grupos de gêmeos idênticos era o que melhor se podia fazer — um melhor que, infelizmente, nada mais era que um menos mal. E mesmo isso já era difícil.

— Porque, na Natureza, são necessários trinta anos para que duzentos óvulos atinjam a maturidade. Mas a nossa tarefa é estabilizar a população neste momento, aqui e agora. Produzir gêmeos a conta-gotas durante um quarto de século, para que servirá isso?

Evidentemente, isso não serviria para nada. Mas a técnica de Podsnap tinha acelerado imenso o processo da maturação. Podia-se obter pelo menos cento e cinquenta óvulos maduros no espaço de dois anos.

— Fecunde-se e bokanovskize-se, ou noutros termos, multiplique-se por setenta e dois, e obter-se-á uma média de quase onze mil irmãos e irmãs em cento e cinquenta grupos de gêmeos idênticos, todos da mesma idade, em perto de dois anos. E, em casos excepcionais, podemos obter de um único ovário mais de quinze mil indivíduos adultos.

Fez sinal a um rapaz louro, de rosto rosado, que, por acaso, passava nesse momento: — Senhor Foster. — O rapaz de rosto rosado aproximou-se. — Pode indicar-nos a máxima produção obtida de um só ovário, Senhor Foster?

— Dezesseis mil e doze, aqui, neste centro — respondeu o Sr. Foster sem nenhuma hesitação, falando muito depressa. Tinha olhos azuis e vivos e um evidente prazer em citar algarismos. — Dezesseis mil e doze em cento e oitenta e nove grupos idênticos. Mas, é claro, tem-se feito muito melhor — continuou com vigor — em alguns centros tropicais. Singapura tem frequentementte produzido mais de dezesseis mil e quinhentos e Mombaça atingiu já os dezessete mil. Mas eles são injustamente privilegiados. É ver como um ovário de negra reage ao líquido pituitário! É espantoso, quando se está habituado a trabalhar com materiais europeus. Ainda assim — acrescentou, rindo (mas o brilho da luta notava-se no seu olhar e o levantamento do queixo era um desafio), ainda assim, temos intenção de os ultrapassar, se for possível. Trabalho neste momento num maravilhoso ovário de Delta-Menos. Tem apenas dezoito meses certos. Mais de doze mil e setecentas crianças já, quer decantadas, quer em embrião. E ele ainda produz mais. Havemos de conseguir vencê-los!

— Ora aí está o estado de espírito que me agrada! — exclamou o Diretor, dando uma palmada nas costas do Sr. Foster. — Venha conosco e faça aproveitar a estes garotos dos seus conhecimentos de especialista.

O Sr. Foster sorriu modestamente.

— Com muito prazer. Seguiram-no. Na Sala de Enfrascamento tudo era agitação harmoniosa e actividade ordenada. Placas de peritônio de porca, todas cortadas nas dimensões convenientes, chegavam continuamente, em pequenos monta-cargas, do Armazém de órgãos, no subsolo. Bzzz, em seguida flap! As portas do monta-cargas abriam-se completamente. O preparador de provetas apenas tinha de estender a mão, segurar a placa, introduzi-la, achatar as bordas e, antes que a proveta assim preparada tivesse tempo de se afastar ao longo do transportador sem fim — bzzz, flap! — , uma outra placa de peritônio tinha subido rapidamente das profundezas subterrâneas, pronta a ser introduzida numa outra proveta, que seguía a anterior nessa lenta e interminável procissão sobre o transportador.

Após os preparadores, vinham os matriculadores. Um a um, os ovos eram transferidos dos seus tubos de ensaio para recipientes maiores; com destreza, a guarnição do peritônio era cortada, a mórula era colocada no devido lugar, a solução salina introduzida... e já a proveta tinha chegado mais longe, à vez dos classificadores. A hereditariedade, a data de fecundação, as indicações relativas ao grupo Bokanovsky, todos os pormenores eram transferidos do tubo de ensaio para a proveta. Não já anônima, mas com nome, identificada, a procissão retomava lentamente a marcha, a marcha através de uma abertura na parede, a marcha para entrar na Sala de Predestinação Social.

— Oitenta e oito metros cúbicos de fichas de cartão — disse o Sr. Foster, com manifesto prazer, ao entrarem.

— Contendo todas as informações úteis — acrescentou o Diretor.

— Postas em ordem diariamente, todas as manhãs.

— E coordenadas todas as tardes.

À base das quais são feitas os cálculos. Tantos indivíduos desta ou daquela qualidade — disse o Sr. Foster.

— Divididos nestas ou naquelas quantidades.

— A percentagem de decantação óptima em qualquer momento desejado.

— Sendo as perdas imprevistas rapidamente compensadas.

— Rapidamente — repetiu o Sr. Foster. — Se soubessem quantas horas extraordinárias tive de fazer após o último terremoto no Japão! — Riu com bom humor e sacudiu a cabeça.

— Os predestinadores enviam os seus números aos fecundadores.

— Que lhes mandam os embriões que eles desejam.

— E as provetas chegam aqui para serem predestinadas pormenorizadamente.

— Para depois descerem ao Depósito de Embriões.

— Onde vamos agora. E, abrindo uma porta, o Sr. Foster tomou a dianteira para descer uma escada e conduzi-los ao subsolo.

A temperatura era ainda tropical. Desceram numa penumbra que cada vez era maior. Duas portas e um corredor com duas esquinas protegiam a cave contra qualquer possível infiltração da luz diurna.

— Os embriões parecem-se com uma película fotográfica — disse o Sr. Foster humoristicamente, abrindo a segunda porta. — Apenas suportam a luz vermelha.

Com efeito, a obscuridade, onde reinava um pesado calor, em que os estudantes então seguiram, era visível e encarnada, como, numa tarde de Verão, é a obscuridade apercebida através das pálpebras cerradas. Os lados arredondados das provetas que se alinhavam até ao infinito, fila sobre fila, prateleira sobre prateleira, brilhavam como inúmeros rubis, e entre os rubis moviam-se fantasmas vermelhos e vagos de homens e de mulheres de olhos purpúreos, de faces rutilantes. Um zunido, um rumor de máquinas, imprimiam ao ar uma ligeira vibração.

— Dê-lhes alguns números, Senhor Foster — disse o Diretor, que estava fatigado de falar.

O Sr. Foster nada mais desejava senão isso.

— Duzentos e vinte metros de comprimento, duzentos de largura, dez de altura. — Apontou com a mão para cima. Como 9 galinhas a beber água, os estudantes ergueram os olhos para o teto distante. — Três andares de porta-provetas: ao nível do solo, primeira galeria, segunda galeria.

A estrutura metálica das galerias sobrepostas, leve como uma teia de aranha, perdia-se em todas as direcções, na obscuridade. Perto deles, três fantasmas vermelhos estavam activamente ocupados em descarregar provetas que retiravam de uma escada móvel, o escalator que partia da Sala de Predestinação Social.

Cada proveta podia ser colocada num de entre quinze porta-garrafas, cada um dos quais, embora não fosse possível notar-se, era um transportador que avançava à velocidade de trinta e três centímetros e um terço por hora. Duzentos e sessenta e sete dias, à razão de oito metros por dia. Um total de dois mil cento e trinta e seis metros. Uma volta à cave ao nível do solo, uma outra à altura da primeira galeria, metade de outra à altura da segunda e, na ducentésima sexagésima sétima manhã, a luz do dia na Sala de Decantação. Daí em diante, a existência independente — assim era denominada.

— Mas nesse intervalo de tempo — disse o Sr. Foster como conclusão — conseguimos fazer-lhes bastantes coisas. Oh! Muitas coisas. — O seu riso era satisfeito e triunfante.

— Aí está o estado de espírito que me agrada — disse de novo o Diretor. — Vamos dar a volta. Dê-lhes todas as explicações, Senhor Foster.

Com eficácia, o Sr. Foster deu-as. Falou-lhes do embrião, que se desenvolve no seu leito de peritônio. Fez-lhes provar o rico pseudo-sangue de que ele se alimenta. Explicou por que razão tinha necessidade de ser estimulado pela placentina e pela tiroxina. Falou-lhes do extracto de corpus luteum. Mostrou-lhes os tubos reguladores por onde, em todos os doze metros entre zero e dois mil e quarenta ele é injetado automaticamente. Falou dessas doses gradualmente crescentes de líquido pituitário administradas durante os últimos noventa e seis metros do seu percurso. Descreveu a circulação materna artificial instalada em cada proveta no metro cento e doze. Mostrou-lhes o reservatório de pseudo-sangue, a bomba centrífuga que mantém o líquido em movimento sobre a placenta e o impele para o pulmão sintético e para o filtro dos resíduos. Disse algumas palavras acerca da perigosa tendência do embrião para a anemia, das doses maciças de extracto de estômago de porco e de fígado de poldro fetal que, em consequência, é necessário fornecer-lhe. Mostrou-lhes os mecanismos simples por meio dos quais, durante os dois últimos metros de cada percurso de oito, todos os embriões são simultaneamente agitados para se familiarizarem com o movimento. Aludiu ao perigo daquilo que se chama "traumatismo de decantação" e enumerou as precauções tomadas a fim de reduzir ao mínimo, por um ajustamento apropriado do embrião na proveta, esse perigoso choque. Falou-lhes das provas de sexo efetuadas próximo do metro duzentos e explicou-lhes o sistema de classificação: um T para os machos, um círculo para as fêmeas, e para os que estavam destinados a ser neutros um ponto de interrogação negro sobre fundo branco.

— Porque, é claro — disse o Sr. Foster — na imensa maioria dos casos a fecundidade é simplesmente um incômodo. Um ovário fértil em cada mil e duzentos chegaria à vontade para as nossas necessidades. Mas precisamos de ter por onde escolher. E, além disso, é necessário conservar uma enorme margem de segurança. Assim, deixamos que se desenvolvam normalmente cerca de trinta por cento dos embriões femininos. Os outros recebem uma dose de hormonas sexuais masculinas em todos os vinte e quatro metros durante o resto do percurso. Resultado — quando são decantados, estão neutros, absolutamente normais sob o ponto de vista da estrutura, salvo — teve de reconhecer — possuírem, é verdade, uma leve tendência para o crescimemto da barba, mas estéreis. Estéreis garantidos. O que nos leva, enfim — continuou o Sr. Foster — , a abandonar o domínio da simples imitação estéril da Natureza para entrarmos no mundo muito mais interessante da descoberta humana. — Esfregou as mãos. — Porque, é evidente, não nos contentamos unicamente em incubar os embriões: isso qualquer vaca é capaz de fazer. Também os predestinamos e condicionamos. Decantamos os nossos bebês sob a forma de seres vivos socializados, sob a forma de Alfa ou de Ípsilons, de futuros varredores ou de futuros...

Esteve a ponto de dizer "futuros Administradores Mundiais", mas, corrigindo-se a tempo, disse "futuros Diretores de Incubação".

O D.I.C. mostrou-se sensível ao cumprimento, que recebeu com um sorriso.

Encontravam-se no metro trezentos e vinte, no porta-garrafas n.º 11. Um jovem mecânico Beta-Menos trabalhava com uma chave de parafusos e uma chave inglesa, na bomba de pseudo-sangue de uma proveta que passava. O zunido do motor elétrico tornava-se mais grave, em mudanças graduais, e enquanto ele apertava os parafusos... Mais grave, mais grave, uma torção final, uma olhada ao contador de voltas, e terminou. Avançou dois passos ao longo da fila e começou a mesma operação na bomba seguinte.

— Ele diminui o número de voltas por minuto — explicou o Sr. Foster. — O pseudo-sangue circula mais lentamente e, em consequência, passa para os pulmões com intervalos mais demorados; dá, assim, menos oxigênio ao embrião. Nada melhor que a falta de oxigênio para manter um embrião abaixo normal. — De novo esfregou as mãos.

— Mas para que é preciso manter o embrião abaixo normal? — perguntou um estudante ingênuo.

— Que burro! — disse o Diretor, quebrando um longo silêncio. — Nunca lhe veio à ideia que é necessário ao embrião Ípsilon um ambiente de Ípsilon, assim como uma hereditariedade de Ípsilon?

Era evidente que isso nunca lhe tinha passado pela ideia.

Ficou confuso e contrito.

— Quanto mais baixa é a casta — disse o Sr. Foster — menos oxigênio se dá. O primeiro órgão atingido é o cérebro. Em seguida o esqueleto. Com setenta por cento do oxigênio normal, obtêm-se anões. Com menos de setenta por cento, monstros sem olhos. Os quais para nada servem — concluiu o Sr. Foster. — No entanto — a sua voz tornou-se confidencial, desejoso de expor o que tinha a dizer — se se pudesse descobrir uma técnica para reduzir a duração da maturação, que benefício isso seria para a sociedade! Consideremos o cavalo.

Eles consideraram-no.

— Adulto aos seis anos; o elefante aos dez, enquanto aos treze um homem não é ainda adulto sexualmente e não o é fisicamente senão aos vinte. Daqui, naturalmente, esse fruto do desenvolvimento retardado: a inteligência humana. Mas entre os Ípsilons — continuou muito justamente o Sr. Foster — não temos necessidade de inteligência humana. Não há necessidade e, portanto, não se obtém. Mas, se bem que entre os Ípsilons o espírito esteja maduro aos dez anos, é necessário esperar dezoito para que o corpo esteja apto para o trabalho. Tantos anos de maturidade, supérfluos e sem utilidade! Se fosse possível acelerar o desenvolvimento físico até o tornar tão rápido como, digamos, o de uma vaca, que enorme economia poderia daí resultar para a comunidade!

— Enorme! — murmuraram os rapazes.

O entusiasmo do Sr. Foster era contagioso. As suas explicações tornaram-se mais técnicas: falou da coordenação anormal das endócrinas, que faz que os homens cresçam tão lentamente, e admitiu, para explicar tal fato, uma mutação germinal. Poder-se-ão destruir os efeitos dessa mutação? Poder-se-á fazer retroceder o embrião doÍpsilon, por meio de uma técnica apropriada, até ao caráter normal que existe entre os cães e as vacas? Tal era o problema. E estava quase a ser resolvido.

Pilkington, em Mombaça, tinha conseguido produzir indivíduos sexualmente aptos aos quatro anos e de tamanho adulto aos seis e meio. Um triunfo científico mas, socialmente sem utilidade. Os homens e mulheres de seis anos e meio eram demasiado estúpidos, até mesmo para realizar o trabalho de um Ípsilon. E o processo era do gênero tudo ou nada: ou não se conseguia modificar nada, ou se modificava tudo completamente. Tentava-se ainda encontrar o meio termo ideal entre adultos de vinte anos e adultos de dez. Infelizmente, até ao presente, sem sucesso algum. O Sr. Foster suspirou, meneando a cabeça.

As suas peregrinações na penumbra avermelhada tinham-nos levado, próximo do metro cento e setenta, ao porta-garrafas n.º 9. A partir desse ponto, o porta-garrafas desaparecia numa abertura e as provetas terminavam o restante trajeto numa espécie de túnel, interrompido aqui e ali por aberturas de dois ou três metros de largura.

— O condicionamento ao calor — explicou o Sr. Foster. Túneis quentes alternavam com túneis frios. O frio estava combinado com outras sensações desagradáveis, sob a forma de raios-X duros. Logo que eram decantados, os embriões tinham horror ao frio. Estavam predestinados a emigrar para os Trópicos, a serem mineiros, tecelões de seda de acetato, operários de fundição. Mais tarde, o seu espírito seria formado de maneira a confirmar o julgamento do corpo.

— Nós condicionamo-los de tal maneira que eles suportam bem o calor — disse o Sr. Foster, concluindo. — Os nossos colegas lá de cima ensiná-los-ão a gostar dele.

— E é aí — disse sentenciosamente o Diretor, à guisa de contribuição ao que estava a ser dito — que está o segredo da felicidade e da virtude: gostar daquilo que se é obrigado a fazer. Tal é o fim de todo o condicionamento: fazer as pessoas apreciar o destino social a que não podem escapar.

Num intervalo entre dois túneis, uma enfermeira sondava delicadamente, por meio de uma seringa longa e fina, o conteúdo gelatinoso de uma proveta que passava. Os estudantes e o seu guia pararam, para a observar silenciosamente alguns momentos.

— Olá, Lenina — disse o Sr. Foster quando finalmente ela retirou a seringa e se ergueu.

A moça voltou-se com um sobressalto. Notava-se que era extremamente bonita, se bem que a iluminação lhe desse uma máscara de lúpus e olhos purpúreos.

— Henry!

O seu sorriso, como um clarão vermelho, exibiu uma fila de dentes de coral. — Encantadora, encantadora — murmurou o Diretor, dando-lhe duas ou três palmadas amigáveis. Em troca recebeu um sorriso deferente.

— O que está a dar-lhes? — perguntou o Sr. Foster, com um tom altamente profissional na voz.

— Oh! A febre tifóide e a doença do sono habituais.

— Os trabalhadores dos Trópicos começam a receber inoculações no metro cento e cinquenta — explicou o Sr. Foster aos estudantes. — Os embriões têm ainda guelras, como os peixes. Imunizamos o peixe contra as doenças do futuro homem. — E depois, virando-se para Lenina, disse: — quinze para as seis, no terraço, como habitualmente.

— Encantadora — disse o Diretor mais uma vez, com uma pequena palmada final. E afastou-se atrás dos outros.

No porta-garrafas n.º 10, várias filas de trabalhadores das indústrias químicas da futura geração eram preparados para suportar o chumbo, a soda cáustica, o alcatrão e o cloro. O primeiro de um grupo de duzentos e cinquenta mecânicos embrionários de aviões-foguetes passava precisamente em frente do registo do metro mil e cem, no porta-garrafas n.º 3. Um mecanismo especial mantinha os recipientes em constante rotação.

— Para aperfeiçoar neles o sentido do balanço — explicou o Sr. Foster. — Efetuar reparos no exterior de um avião-foguete em voo é um trabalho delicado. Diminuímos a circulação quando estão em posição normal, de maneira que fiquem meio esfomeados, e duplicamos o fluxo de pseudo-sangue quando estão de cabeça para baixo. Aprendem assim a associar a posição invertida com o bem-estar. Efetivamente, eles só se sentem verdadeiramente felizes quando estão de cabeça para baixo. E agora — continuou o Sr. Foster — gostaria de lhes mostrar um condicionamento muito interessante para inteletuais Alfa-Mais. Temos um importante grupo deles no porta-garrafas n.º 5. À altura da primeira galeria — gritou para dois rapazes que tinham começado a descer para o andar térreo. — Eles estão perto do metro novecentos — explicou. — Não se pode, de fato, efetuar nenhum condicionamento eficaz antes de os fetos terem... — O Diretor consultou o relógio. — dez para as três — disse. — Receio que não tenhamos tempo para observar os embriões intelectuais. Temos de chegar ao infantário antes de as crianças terem acabado a sesta da tarde.

O Sr. Foster ficou fortemente desiludido.

— Pelo menos uma olhada à Sala de Decantação — suplicou.

— Seja. — O Diretor sorriu indulgentemente. — Apenas olhada.

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