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Primeiro Capítulo: Ao Farol

Primeiro Capítulo: Ao Farol

Primeira Parte: A Janela

Capítulo 1



Ao Farol Texto Integral
217 páginas

ISBN:


Preço: R$ 5,05

– É claro que amanhã fará um dia bonito – disse a Sra. Ramsay. – Mas vocês terão que madrugar – acrescentou.

Essas palavras trouxeram uma extraordinária alegria a seu filho, como se a excursão já estivesse definitivamente marcada. Após a escuridão de uma noite e a travessia de um dia, o desejo – por tantos anos aspirado – era agora tangível.

James Ramsay, sentado no chão, enquanto a mãe falava, recortava gravuras do catálogo das Lojas do Exército e da Marinha. Mesmo aos seis anos de idade, pertencia ao número daqueles que não conseguem separar um sentimento do outro mas, ao contrário, deixam que as expectativas futuras – com suas alegrias e tristezas – toldem o que no momento está ao alcance da mão. Para tais pessoas, ainda na mais tenra idade, qualquer oscilação de sensações tem o poder de cristalizar e fixar o momento em que repousam, misturadas, alegria e tristeza: assim é que James Ramsay emprestava à fotografia de uma geladeira uma felicidade beatífica. Cercava-a de alegria. O carrinho de mão, o cortador de grama, o som dos álamos, folhas branqueando antes da chuva, gralhas grasnando, o raspar de vassouras, vestidos roçando – tudo isso era tão colorido e distinto em sua mente que ele já tinha seu código particular, sua linguagem secreta, embora fosse a imagem da mais pura e inflexível severidade: testa alta, arrogantes olhos azuis, impecavelmente cândido, recriminativo ao deparar com alguma fraqueza humana. Observando-o assim a guiar a tesoura com precisão em torno da geladeira, sua mãe imaginou-o num tribunal com uma rútila toga de arminho, ou talvez dirigindo uma empresa durante uma crise financeira.

– Mas o dia não ficará bom – disse o pai, parando em frente à janela da sala de visitas.

Se houvesse um machado, um atiçador, ou qualquer outra arma à mão que abrisse uma fenda no peito do pai e por onde a vida se escoasse, James a teria empunhado naquele instante. Tais eram os extremos de emoção que o Sr. Ramsay despertava no íntimo dos filhos, apenas com sua presença. Ali estava: de pé, o perfil agudo como uma faca e estreito como sua lâmina, sorrindo sarcasticamente – não apenas pelo prazer de desiludir o filho e lançar sua mulher (que era mil vezes melhor do que ele, pensou James) no ridículo, mas sobretudo por causa da certeza íntima que tinha da exatidão de seus julgamentos. O que ele dizia era verdade. Era incapaz de mentir: nunca interferia em alguma coisa ou se pronunciava de modo a dar um pouco de prazer a qualquer mortal, e muito menos a seus filhos, que, desde a infância, ficavam sabendo que a vida é árdua, os fatos inflexíveis, e que a passagem para essa terra fabulosa onde nossas esperanças mais brilhantes se extinguem e nossas frágeis críticas malogram na escuridão exige, acima de tudo – concluiria o Sr. Ramsay, empertigando-se e franzindo os olhos azuis na direção do horizonte –, coragem, lealdade e perseverança.

– Mas talvez fique bom, pelo menos espero – disse a Sra. Ramsay impacientemente, ao dar um ponto na meia castanha que tricotava. Se a terminasse nessa mesma noite, e afinal fossem mesmo ao Farol, seria dada ao filho do faroleiro, que estava ameaçado de tuberculose, além de uma pilha de revistas velhas e um pouco de fumo. Tudo que encontrassem atirado pelo chão, desarrumando a sala, e que realmente ninguém quisesse para si, seria dado àquela pobre gente que devia morrer de tédio, sentada o dia inteiro, sem nada para fazer, a não ser limpar a lâmpada, acender o lume e revolver um pequeno jardim. Faria qualquer coisa para alegrá-los, pois como poderia alguém gostar de ficar trancado um mês inteiro, num rochedo perdido no meio do mar – e ainda mais, se o tempo estivesse ruim?, perguntou-se ela. Não receber cartas ou jornais, não ver ninguém; sendo casado, não ver a mulher, não saber como estão os filhos: se adoeceram, se caíram e quebraram a perna ou o braço. Ver sempre as mesmas ondas quebrando tristemente semana após semana, interrompidas em seu ritmo monótono apenas pela tempestade que se aproxima, cobrindo as janelas de espuma, atirando os pássaros de encontro ao Farol, estremecendo tudo, impedindo as pessoas de saírem, com medo de serem varridas para o mar. Como se poderia gostar disso?, perguntou, dirigindo-se principalmente às filhas. Acrescentou, então, num tom bastante diferente, que as pessoas precisavam levar-lhes todo o conforto possível.

– É justamente o "oeste" – disse Tansley. o ateu, que compartilhava do passeio noturno do Sr. Ramsay pelo terraço, mantendo os dedos ossudos afastados para que o vento soprasse por entre eles. Isso significava que o vento soprava da pior direção possível para se atracar no Farol. Era detestável de sua parte trazer isso à baila e desapontar James ainda mais, admitiu a Sra. Ramsay. Realmente ele dizia coisas desagradáveis, mas ela não permitiria que rissem dele. "O ateu", chamavam-no, "o ateuzinho." Rose zombava dele; Prue, Andrew, Jasper, Roger também. Até o velho e desdentado Badger espicaçara-o quando Nancy dissera (segundo suas próprias palavras) que ele era o centésimo décimo jovem a persegui-las até as Hébridas, quando elas teriam preferido ficar sozinhas.

– Isso não faz sentido – disse a Sra. Ramsay com severidade. Não admitia que seus filhos, exagerados como ela mesma (que convidava pessoas demais e acabava por ter de hospedar algumas na cidade), fossem indelicados para com seus convidados, particularmente em relação aos jovens que vinham passar as férias e que eram pobres como ratos de igreja – embora "excepcionalmente capazes", como dizia seu marido com ungida admiração. Sem dúvida alguma tinha sob sua proteção a totalidade do sexo que não era o seu, por razões que não conseguia explicar: pelo cavalheirismo dos homens, seu valor, pelo fato de negociarem tratados, governarem a índia, controlarem as finanças ou, mais possivelmente, por certa atitude em relação a ela que nenhuma mulher poderia se eximir de achar agradável – algo de leal, inocente, respeitável, que, em sua idade, poderia receber de um jovem sem perder a dignidade, enquanto as jovens (rogava aos céus não se desse o mesmo com suas filhas) não viam o verdadeiro e recôndito valor disso.

Ela se voltou para Nancy, dizendo com severidade: ele não as perseguira. Fora convidado.

Era preciso achar um meio de escapar a tudo aquilo. Devia haver uma forma mais simples, menos complicada, suspirou ela. Quando se olhou no espelho, viu os cabelos grisalhos, a face abatida, aos cinquenta anos, e pensou: poderia ter conduzido melhor as coisas – seu marido, o dinheiro, os livros dele. Mas nunca se, arrependeria de suas decisões, nunca fugiria das dificuldades ou se eximiria de suas obrigações. Irradiava dignidade nesse momento, e só com um rápido alçar de olhos do prato diante de si, após o silêncio que se seguiu às suas palavras sobre Charles Tansley, é que as filhas – Prue, Nancy e Rose – ousaram deleitar-se com a ideia do que imaginavam ser uma vida diferente da que tinham: talvez mais emocionante, possivelmente em Paris, sem ter de se precaver contra este ou aquele homem. Havia no pensamento de todas elas uma indizível curiosidade em relação a coisas tão diversas como cavalheirismo, o Banco da Inglaterra e o Império das índias, dedos repletos de anéis e rendas. Havia nisso, para todas elas, um pouco da essência da beleza, que enchia seus jovens corações de anseios pela masculinidade, e as fazia, enquanto se sentavam à mesa sob os olhos da mãe, respeitar a extrema severidade e cortesia com que as advertira sobre o desprezível ateu que as tinha perseguido na Ilha de Skye, ou – falando mais precisamente – fora convidado para ficar com elas. Tal advertência fora feita com a mesma dignidade com que uma rainha tiraria da lama o pé imundo de um mendigo para lavá-lo.

– Ninguém atracará no Farol amanhã – disse Charles Tansley ao Sr. Ramsay, batendo as mãos, enquanto olhava pela janela. Sem dúvida, ele já havia dito o bastante. Ela desejava que ambos deixassem James e a ela em paz, e continuassem seu passeio. Não pôde evitar olhá-lo: era um espécime tão miserável, diziam as crianças, cheio de reentrâncias e saliências. Não sabia jogar etiquete, era hesitante, confundia-se. Era grosseiro e sarcástico, dizia Andrew. Sabiam do que mais gostava: andar de um lado para outro com o Sr. Ramsay, comentando quem havia ganho isto ou aquilo, quem "recitava às maravilhas" versos latinos, quem era "brilhante mas fundamentalmente doente, na minha opinião", quem era sem dúvida "o sujeito mais capaz em Balliol", mas enterrara sua inteligência em Bristol ou Bedford, estando agora, no entanto, prestes a alcançar fama, quando seus prolegômenos para um ramo da matemática ou filosofia fossem publicados. A propósito, as provas das primeiras páginas já estavam com ele, será que o Sr. Ramsay gostaria de vê-las? Era sobre isso que falavam.

Algumas vezes ela não podia deixar de rir. Há dias falara algo sobre ondas "altas como montanhas". Sim, respondera Charles Tansley, estavam um pouco agitadas. "Você não está completamente encharcado?", perguntara-lhe ela. "Só um pouco úmido, mas não muito", respondeu o Sr. Tansley apertando a camisa, tocando as meias.

Mas não era bem isso que importunava as crianças, nem seu rosto ou suas maneiras: era ele mesmo, seu modo de ser interior. Quando falavam de alguma coisa interessante – sobre pessoas, música, história – ou quando comentavam que a manhã estava bonita e seria bom ficarem sentados ao ar livre, Charles Tansley não se dava por contente enquanto não mudasse completamente o rumo da conversa e os exasperasse com sua mania de esmiuçar tudo. Estava sempre falando de galerias de arte e perguntando se gostavam de sua gravata. "Só Deus sabe como sua gravata é detestável", dizia Rose.

Desaparecendo da mesa logo após a refeição, furtivos como gazelas, os oito filhos da Sra. Ramsay procuravam seus quartos – o único lugar seguro na casa em que poderiam conversar sobre qualquer coisa: a gravata de Tansley, a Carta da Reforma, aves marinhas, borboletas ou pessoas. Enquanto isso, numa dessas mansardas – separadas umas das outras por uma simples tábua que permitia ouvir cada passo ou os soluços da moça suíça que chorava pelo pai que morria de câncer num vale dos Grisons –, o sol se despejava iluminando raquetes, flanelas, chapéus de palha, tinteiros, tubos de tinta, escaravelhos e crânios de pequenos pássaros, fazendo desprender-se de longas tiras encrespadas de algas presas à parede um odor de sal e ervas: o mesmo que se desprendia das toalhas de banho carregadas de areia.

Brigas, separações, divergências de opinião e preconceitos compunham a própria tessitura do ser – oh, por que tinham de começar tão cedo, lastimava-se a Sra. Ramsay. Eram tão críticos, seus filhos. Diziam tantas tolices. Veio da sala de jantar, segurando James pela mão, pois ele não iria com os outros. Parecia-lhe tão sem nexo inventar divergências, quando as pessoas já as tinham em demasia. "As divergências reais são mais que suficientes", pensou, de pé junto à janela da sala de visitas. Nesse momento pensava nos ricos e nos pobres, nos nobres e nos plebeus: os nobres, ela os respeitava com certa relutância, pois possuía nas veias o sangue daquela nobilíssima e algo mítica casa italiana, cujas descendentes tão trêfega e encantadoramente sussurraram e saracotearam pelos salões ingleses do século XIX. Delas herdara a inteligência, a maneira de ser e o gênio: não dos vadios ingleses ou dos frios escoceses. Preocupava-se particularmente com o problema dos ricos e dos pobres: as coisas que vira pessoalmente ali e em Londres, quando visitara viúvas e esposas dedicadas, munida de uma bolsa, um caderno de notas e um lápis, apontando salários e despesas, emprego e desemprego, em colunas cuidadosamente dispostas para esse fim, na esperança de assim deixar de ser uma mulher voltada apenas para si mesma, cuja caridade era em parte um consolo para sua própria indignação, em parte um alívio para sua curiosidade – pretendendo tornar-se uma pesquisadora que explicasse o fenômeno social, coisa que, para seu espírito pouco cultivado, era objeto de vívida admiração.

Essas questões pareciam-lhe insolúveis, enquanto permanecia de pé ali, segurando James pela mão. O jovem do qual todos riam tinha-a seguido até a isala de visitas. Estava perto da mesa, mexendo desajeitadamente em alguma coisa. Mesmo sem o olhar, ela percebia o quanto se sentia deslocado. Todos tinham ido embora: as crianças, Minta Doyle e Paul Rayléy, Augustus Carmichael, o Sr. Ramsay – todos. Ela voltou-se com um suspiro e disse:

– Será que o aborreceria acompanhar-me, Sr. Tansley? Tinha que dar um recado enfadonho na cidade e uma ou duas cartas para escrever. Demoraria uns dez minutos. Iria pôr um chapéu. Passado algum tempo, ela reapareceu com uma cesta e uma sombrinha, como se estivesse preparada para uma excursão que, no entanto, interrompeu no preciso momento em que cruzavam o campo de tênis, para dirigir-se ao Sr. Carmichael – que se aquecia ao sol com seus olhos felinos entreabertos, olhos que pareciam refletir o movimento dos ramos e o passar das nuvens, sem, contudo, dar qualquer sinal da existência de pensamentos ou emoções. Perguntou-lhe se queria alguma coisa.

Estavam fazendo uma grande expedição – disse ela, rindo. Iam à cidade. – Selos, papel de carta, fumo?, sugeriu, parando a seu lado. Não, ele não queria nada. Suas mãos entrelaçavam-se sobre a vasta barriga. Os olhos pestanejaram como se quisesse agradecer amavelmente essas gentilezas (ela estava sedutora, apesar de um pouco nervosa). Mas não pôde, submerso numa sonolência cinzento esverdeada que os envolvia a todos, sem necessidade de palavras, numa vasta e bondosa letargia carregada de benevolência: toda a casa, o mundo e as pessoas que o habitavam. Ele pusera umas gotas de alguma coisa em seu copo no almoço – pensavam as crianças, devido às vivas listras amarelo-canário nas barbas e bigodes, que normalmente seriam branco-leitosos. Não, não queria nada – murmurou finalmente.

Poderia ter sido um grande filósofo – disse a Sra. Ramsay, enquanto desciam a estrada em direção à vila de pescadores –, mas fizera um mau casamento. Segurando sua sombrinha com muito aprumo e andando com um ar de indescritível expectativa – como se fosse encontrar alguém na primeira esquina – contou a história: uma paixão em Oxford por uma moça, um casamento prematuro, a pobreza, uma viagem à Índia, algumas traduções de poemas – "belíssimas em minha opinião" –, a vontade de ensinar persa ou hindustani às crianças (mas qual a utilidade disso?). E agora se deixava ficar deitado na grama – como tinham visto.

Charles Tansley sentiu-se lisonjeado. Maltratado como sempre fora, agradou-lhe que a Sra. Ramsay lhe contasse isso. As insinuações que ela fazia sobre a grandeza da inteligência masculina – mesmo na sua decadência –, sobre a submissão de todas as esposas aos trabalhos de seus maridos (não que ela culpasse aquela moça, pois o casamento não fora de todo mau), fizeram-no sentir-se bem como nunca. Gostaria, se tomasse um táxi, por exemplo, de pagar a corrida. Quanto à sua sacola, não poderia carregá-la? Não, não – respondeu –, sempre a carregava ela mesma. E foi isso o que ela fez. Sim, isso e muitas outras coisas – particularmente algo que o exaltava e perturbava por razões que não saberia dizer. Gostaria que o visse de bata e capuz, andando numa procissão. Uma colegiatura, um professorado – sentia-se capaz de qualquer coisa e imaginava-se... mas o que estava ela olhando? Um homem colando um cartaz. A enorme folha de papel pendente alisava-se, e cada golpe da brocha revelava pernas, arcos, cavalos, brilhantes tonalidades de verde e vermelho lindamente suaves – até que metade do muro ficou coberta com o anúncio de um circo: uma centena de homens a cavalo, vinte focas amestradas, tigres. Esticando o pescoço, pois era míope, ela leu:... "visitará esta cidade." Era um trabalho terrivelmente perigoso um homem com um só braço subir ao topo de uma escada assim – exclamou. O braço esquerdo daquele ali fora cortado por uma ceifadeira dois anos atrás.

– Vamos! – gritou ela, continuando a andar, como se todos esses cavalos e cavaleiros a tivessem enchido de euforia infantil, fazendo-a esquecer sua comiseração de há pouco.

– Vamos – repetiu ele, estalando a língua, mas com uma tal circunspecção que a fez estremecer. – Vamos ao circo. – Não, ele não conseguia dizê-lo normalmente. Nem senti-lo direito. Mas por que não? – perguntou-se a Sra. Ramsay. O que havia de errado com o rapaz? Gostava dele sinceramente naquele momento. Não tinham ambos ido ao circo, quando eram crianças? – perguntou-lhe. Nunca – respondeu-lhe, como se ela tivesse feito exatamente a pergunta que ele queria responder: ansiava há dias por dizer que não iam ao circo. Sua família era grande, com nove irmãos e irmãs, e seu pai era um trabalhador: – Meu pai é farmacêutico, Sra. Ramsay. Tem uma loja. – Ele s,e mantinha desde os treze anos. Não raro passava os invernos sem um casacão. Na universidade nunca pôde "retribuir gentilezas" (esse era seu jargão habitual). Tinha que fazer seus pertences durarem duas vezes mais que os outros; fumava o tabaco mais barato – desse fumo ruim que os velhos de beira de cais fumam. Trabalhava muito: sete horas por dia... – continuava falando, e o assunto agora era sobre a influência de alguma coisa sobre alguém. Prosseguiam em seu caminho, e a Sra. Ramsay não captava bem o sentido do que ele dizia, apenas uma palavra aqui e ali: tese... bolsa de estudos... licenciatura... leitorado... Não conseguia acompanhar o horrível jargão acadêmico que jorrava com tanta facilidade – mas via agora por que a ida ao circo o perturbara tanto, coitadinho, e por que no mesmo instante se saíra com toda aquela história sobre o pai, a mãe, os irmãos e irmãs. Cuidaria que não rissem mais dele. Contaria isso a Prue. Supunha que ele gostaria de comentar que fora ver Ibsen com os Ramsays. Ele era terrivelmente pedante – oh, sim, um maçante insuportável, pois, embora já tivessem chegado à cidade e estivessem na rua principal onde carroças passavam raspando o cascalho, mesmo assim continuava falando sobre escolas populares, ensino, operários, ajuda à nossa própria classe, e conferências, até que ela percebeu que ele recobrara completamente sua circunspecção. Tinha-se recuperado do circo, e ia começar (agora gostava dele sinceramente) a lhe contar que... – Mas nesse momento deram no cais e, ao ver as casas desvanecendo de ambos os lados e toda a baía estendendo-se diante deles, a Sra. Ramsay não pôde deixar de exclamar: – Oh! Que lindo!, pois a imensidão de água azul surgia diante dela; o antigo Farol, distante, austero, no centro; e à direita, tão longe quanto a vista alcançava, diminuindo e declinando em suaves ondulações, as dunas verdes de relva fluida e selvagem, que sempre pareciam correr para algum país lunar, inabitado pelos homens.

Era essa a paisagem – disse ela, parando, com os olhos mais cinzentos – de que seu marido gostava tanto.

Ficou imóvel por um momento. Mas agora, disse, artistas vieram para cá. E lá estava, a apenas alguns passos, um deles, de pé, com um chapéu panamá e botas amarelas – todo seriedade, suavidade, concentração. Por tudo isso era observado por dez menininhos, com um ar de profundo contentamento no rosto redondo e vermelho. Olhava atentamente e, depois, mergulhava a ponta do pincel num montículo macio de verde ou rosa. Desde que o Sr. Paunceforte chegara ali, três anos atrás, todos os quadros eram assim, disse ela, verdes e acinzentados, com barcos a vela cor de limão e mulheres cor-de-rosa na praia.

Mas os amigos de sua avó, observou ela, lançando uma olhadela discreta ao passarem, tinham o maior trabalho: primeiro misturavam os pigmentos, depois moíam-nos, e então colocavam panos levemente molhados sobre a tinta para mantê-la úmida.

O Sr. Tansley pensou que ela estava insinuando que a pintura daquele homem estava rala – foi isso o que disse? As cores não pareciam sólidas? Foi isso o que disse? Sob a influência da extraordinária emoção que começara no jardim, quando quisera segurar sua sacola, e crescera durante todo o passeio, aumentando na cidade, quando quisera contar-lhe tudo sobre si mesmo (e tudo que conhecera até então), chegava a ver tudo um pouco deformado. Era terrivelmente estranho.

Ali estava ele de pé, na sala da casinha acanhada onde ela o trouxera, esperando-a, enquanto ia um instante ao segundo andar ver uma mulher. Ouvia seu passo rápido em cima; ouvia sua voz alegre e logo depois baixa. Olhou os guardanapos e caixas de chá, e as sombras dos globos, enquanto esperava bastante impaciente, ansioso por voltar para casa e decidido a levar a sacola dela. Então ouviu-a sair; fechar a porta; dizer que deveriam manter as janelas abertas e as portas fechadas (devia estar falando com uma criança). De repente, surgiu, parando por um instante em silêncio (como se tivesse ficado representando lá em cima, e por um momento permanecesse parada agora, quase imóvel, diante do quadro da Rainha Vitória, com a Ordem Azul da Jarreteira). De repente, descobriu: era a pessoa mais bela que conhecera.

Com estrelas nos olhos e véus no cabelo, com ciclâmens e violetas selvagens – mas em que despropósito estava pensando? Tinha no mínimo cinquenta anos e oito filhos. Caminhando por campos floridos e levando ao peito botões esmagados e carneiros caídos; com estrelas nos olhos e o vento no cabelo – ele segurou sua sacola.

– Adeus, Elsie – disse ela, e subiram a rua, ela segurando a sombrinha, muito aprumada, andando como se esperasse encontrar alguém na próxima esquina. Pela primeira vez em sua vida, Charles Tansley sentiu um orgulho extraordinário; um homem escavando num bueiro parou de cavar e olhou-a; deixou o braço tombar e olhou-a. Charles Tansley sentiu um orgulho extraordinário; sentiu o vento, os ciclâmens e as violetas, pois andava com uma mulher bela pela primeira vez em sua vida. Segurou sua sacola.

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